Sobre espíritos

Conversávamos sobre o lugar em que se mora. Lembrávamos que a nossa cidade está em nós, compõe as tantas coisas da existência que antecede a nossa essência (A existência precede a essência, Sartre). Quer dizer: a cidade que me acolhe para morar não vai ser só um sítio mais ou menos agradável; em grande parte esse sítio será eu, porque nele acontecerá a minha existência, que constituirá a minha essência.
A amiga com quem eu dialogava referiu-me a ironia da qual me valho, quando alguém espinafra seu lugar, ameaçando mudar-se: “Cuidado! Nessa mudança, você vai junto, então, talvez, não resolva nada mudar”. Verdade. Há pessoas que não suportam a si ou ao seu momento, e atribuem seu desgosto à cidade em que vivem. Nada disso, trata-se de uma relação entre pessoa e lugar. Resolvam-se! Mas, essa não era a questão.
Lembrei-me do Zeitgeist, o Espírito da Época. Os tempos têm um Espírito, um “clima”. O Zeitgeist da Alemanha nazista não é comparável ao Espírito dominante na França de 68. Num, ditadura, ordem; noutro, só era proibido proibir. Voltamos à cidade. Haveria um Espírito do Lugar? Sim, há o Genius Loci, a memória coletiva, os meios de lazer, a qualidade da educação, o nível artístico-cultural. Cada cidade tem seu “clima”.
Então, chegamos às turmas, a amigo\as, de memória e de presença, e recordamos o Espírito de Grupo. Amigo\as formam coletivos com alguns interesses afins. Há o Espírito de Equipe, ou de confraria, ou, simplesmente, o Espírito da Turma. Esta “alma” é iluminada pelo Zeitgeist e pelo Genius Loci, e tem marcante incidência sobre o\a indivíduo\a: aprova condutas, lança modas, reforça concepções de vida; é ideológica.
Depressa levamo-nos aos melhores afetos da coexistência humana, que, conforme canta o Skank: “É força antiga do espírito \ Virando convivência \ De amizade apaixonada \ Sonho, sexo, paixão \ Vontade gêmea de ficar \ E não pensar em nada...\ [...] \ Refinando essa amizade \ Eu preciso de você \ [...] \ Na confusão do dia a dia \ No sufoco de uma dúvida \ Na dor de qualquer coisa” (Samuel Rosa\Fausto Fawcett).
Balada Do Amor Inabalável é o nome da canção. Não concordo com o título. Todo amor é abalável. Muitos morrem, já pela força da falta de desejo dos corpos envolvidos, já por causas mais vis. Mas não apeteço tratar disso. Falo só de espíritos. Então, importa dizer que o Espírito da Convivência depende essencialmente dos espíritos que convivem. Dificilmente o convívio será melhor do que os espíritos conviventes.
Afirmo, agora, algo que aparentemente contraria o asseverado acima: as convivências, em si, qualificam ou deterioram espíritos. É que postulo ser a Convivência portadora de status de terceira pessoa interveniente. Seja: há o Eu, há o\a Outro\a e há a Convivência, com seus próprios requerimentos. O Eu e o\a Outro\a, gostem mais, gostem menos, têm que aceitar um mínimo das solicitações da Convivência, ou nada vinga.
E, aí, minha amiga e eu concluímos nossa convivente conversa: não podemos determinar o Zeitgeist; talvez possamos negociar o Genius Loci; quanto a amigo\as, podemos interceder. A Convivência, há de se fazê-la boa, porque ela sempre estará presente. Se nos falsificamos para iludi-la, se a fazemos com mentiras, se nela abafamos pendências, se a agredimos com intolerâncias... ela, tanto e quanto, nos responderá.