Ideologia de gênero, ainda bem
Ideologia é um termo que comporta variados conceitos. Dado que foi utilizado por autore\as importantes, cada um\a dele\as deixou sua marca no vocábulo. Então, o uso da expressão demanda uma proposição de acordo semântico que estabeleça seu significado.
Defino ideologia como um sistema organizado de ideias que explica e justifica situações de mundo; uma interpretação legitimadora dos fenômenos em suas várias manifestações, comumente proposta por determinadas classes sociais para a sociedade em geral.
Como todo\as compomos algum grupo social, o sistema organizado de ideias legitimadas que nos é discursado – nos alcançando e nos constituindo – é o sistema da comunidade que nos concerne. O produto da socialização é o\a indivídio\a ideologizado\a.
Do Houaiss: “sistema de ideias sustentadas por um grupo social, as quais refletem, racionalizam e defendem os próprios interesses e compromissos institucionais, sejam estes morais, religiosos, políticos ou econômicos”. Ideologia comporta a existência.
Eu acrescentaria: relacionais, recreativos, familiares, sexuais, tudo. Tudo é ideológico, inclusive a ideia de verdade. O meu conjunto de convicções, portanto, deriva do sistema ideológico que me alcançou (ou que me “educou”), é demarcado por ele.
Não, há, pois, eternidade ou universalidade ideológica; ideologia é coisa de dado tempo e de dado lugar, deve ser historicizada. E ninguém é infenso\a à ideologia de sua época e espaço. É dizer: eu não escolhi uma ideologia, uma ideologia me constituiu.
A “questão” da ideologia está na sua compreensão como modo “contaminado” de pensar. É comum indivíduo\as e grupos considerarem concepções de mundo diversas das suas como ideológicas no sentido de consciência equivocada da realidade (conforme Marx).
De fato, embora “aparelhos” de direita usem essa compreensão de ideologia, trata-se do entendimento marxista do termo. Ora, inexiste concepção não ideológica de circunstância. O próprio sentido dado às experiências pessoais resulta da eficácia operativa da ideologia.
Muito\as consideram suas subordinações a certas ideias como decisão racional, neutra, correta, escolhida; já as sujeições do\as outro\as a outras ideias são havidas por “ideológicas”, viciadas, interesseiras. É que não aprendemos a suspeitar de nós mesmo\as.
Molde, Houaiss: “aquilo que serve de modelo ou orientação às nossas ações”. Todo\as somos formatado\as, estamos em molde ideológico; nele percebemos carências, formamos esperanças, tudo em revestimento (discurso justificador) atraente e plausível. Veja-se:
Nos anos 1950\60 (publicado em Cabide Vintage) ensinava-se às mulheres, criaturas “vocacionadas” ao lar: “A mulher deve fazer o marido descansar nas horas vagas. Nada de incomodá-lo com serviços ou notícias domésticas” (Jornal das Moças, 1959).
Às circunscritas à casa (vida privada), embonecadas, servis: “O lugar da mulher é o lar. O trabalho fora de casa a masculiniza” (Revista Querida, 1955); “Sempre que o homem sair com os amigos, espere-o linda, cheirosa e dócil” (Jornal das Moças, 1958).
E castas (reserva de uso): “A mulher deve estar ciente que dificilmente um homem pode perdoar uma mulher por não ter resistido às experiências pré-nupciais, mostrando que era perfeita e única, exatamente como ele idealizara” (Revista Cláudia, 1962).
A partir dos anos 1960 (nas injunções históricas do pós-Segunda Guerra), muitas mulheres perceberam a armadilha que significava o lugar social que lhes estava reservado (um destino ideologizado), e começaram a discutir o tema. Nascia o atual feminismo.
Seu aviso essencial: se a mulher tinha (e tem) uma condição biológica por natureza, isso não a remetia ao cumprimento servil da condição social que ideologias religiosas ou patriarcais lhe reservavam. Se a fêmea é natureza, a mulher é gênero, cultura.
Além disso: se houvesse papéis de gênero (por “acordos” sociais, jamais por determinação natural), não haveria assimetria valorativa entre as atribuições da mulher e as do homem. Em resumo, o feminismo deslegitimava a hierarquia entre sexos.
Carolina de Jesus – vale um exemplo –, com o seu modo de viver a vida, desconstrói todo e qualquer argumento até então convencional do que é ser feminina. Sexualmente mulher, foi pai e mãe de seus filhos, buscando com desforço físico meios de subsistência.
Há, pois, sim, ideologia de gênero, mas não como deturpação da realidade natural ou histórica (aliás, inseparáveis na humanidade). Existe ideologia de gênero como práxis (articulação de discursos e práticas) que dá consistência à independência da mulher.
Parêntese reiterativo: independência da mulher, equivalência no Direito Civil. Não obstante diferenças biológicas – atributos, não detrimentos –, reconhecer paridade em condições sociais, dando-se-lhe o necessário, pedindo-se-lhe o possível, como se faz ao homem.
Joan Scott adverte sobre gênero enquanto categoria de análise histórica. Então, quando se aponta um dedo acusador à ideologia de gênero, intenta-se deslegitimar contribuições intelectuais à questão, advindas da ciência (ou de onde mais seja).
Essa ideologia de gênero que contraria os interesses da tradição machista, mormente a religiosa, contudo, vem erigindo legitimidade; ainda não se estabeleceu hegemônica, mas já se espraiou. Muito menos homens perseveram nas tantas machezas que lhe ensinaram.
Gosto-me masculino, entretanto desejo e labuto para que mais se baralhem “coisas de homem” e “coisas de mulher”. Essa mistura será a justa divisão do mundo e a prazerosa repartição da vida. Bem melhor trocar ideias que ditar mandamentos, pois não?