COLONIALISMO

Argélia engrossa o caldo de nações africanas que se distanciam da França rumo ao multilateralismo

Publicado em 28/03/2025 às 18:36
© Foto / Pixabay / jorisamonen

Não é de hoje que a França está perdendo influência e importância em suas ex-colônias africanas na região do Sahel. Mas os recentes embates envolvendo a ex-colônia Argélia e o consequente distanciamento da grande joia do colonialismo francês pode ter sido a gota d'água.

Seja Níger, Burkina Faso, Senegal ou Mali, várias nações da região passaram por mudanças políticas que vêm causando rejeição à influência francesa em seus territórios. A bola da vez é a Argélia, do Magrebe, a maior ex-colônia francesa da África.

A situação piorou depois que o presidente francês, Emmanuel Macron, declarou apoio à proposta do Marrocos de criar o território autônomo no Saara Ocidental sob sua soberania, indo contra o movimento de independência na região, apoiada pela Argélia, que defende um referendo de autodeterminação. O território passou a pertencer à Espanha em 1975, mas nunca conseguiu a soberania pelo fato de o Marrocos ter assumido o controle de boa parte do espaço.

A perda de influência e poder na Argélia é bastante simbólica, de acordo com especialistas entrevistados pelo podcast Mundioka nesta sexta-feira (28).

O professor de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Paulo Velasco avaliou que, no afã de tentar consolidar relações positivas com o Marrocos para assegurar uma presença mínima da França na África, o presidente Macron meteu os pés pelas mãos e vai na contramão dos princípios que alimentam o direito internacional, como o da autodeterminação:

"[…] também alimenta ou chancela uma postura imperialista do Marrocos. Os povos têm o direito de se constituírem, clamam pela autodeterminação. Isso é comum na história do continente africano, muito fortemente ao longo das décadas, na segunda metade do século XX", explicou. "E com os sarauís, a situação não se concretizou, então há uma frustração, evidentemente, na postura desse povo e na postura da Argélia, que é o país que, por hábito, patrocina a causa do sarauís ali no Saara Ocidental", comentou, ao lembrar que o embate levou a Argélia, em meados de 2024, a convocar seu embaixador em Paris, acusando a França de apoio implícito à ocupação marroquina.

Ontem (27), a Argélia anunciou a expulsão do vice-cônsul do Marrocos em Orã, Mohamed Isafiani, alegando "comportamentos suspeitos do interessado incompatíveis com a natureza do exercício de suas funções".

Internacionalista, pesquisadora de etnia e geopolítica do Magrebe, Camila Zambo lembrou que a Organização das Nações Unidas (ONU) não reconhece o Saara Ocidental, mas defende que todos os povos têm direito à autodeterminação, apoia o plano de autonomia e pontuou que a ocupação do Marrocos nesse território representa violação.

Os entrevistados assinalaram que a relação entre metrópole e colônia sempre foi turbulenta e envolveu um processo de independência violenta, causando traumas e feridas que geraram um sentimento anti-França no país.

O interesse francês na região continua a ser o mesmo da época do período colonial: explorar recursos naturais de forma lucrativa. No caso do Marrocos, são as minas ricas em recursos para a fabricação de fertilizantes, sendo que 80% da abundante quantidade de potássio está em terras marroquinas. Zambo destacou a boa posição geográfica tanto para o Atlântico como para o Mediterrâneo.

"Um país que ajuda em inteligência antiterrorista tanto para a região quanto quem faz a travessia pelo Marrocos para acessar a Europa. Outra coisa que pesa demais é a presença russa no continente, que vem aumentando. […] é um mercado muito promissor na questão de gás, energia renovável, fosfato, pesca, que aliás é tecnicamente ilegal, e de armas também", acrescentou ela.

O fracasso do soft power francês, na opinião de Velasco, se deve ao fato de os governos nunca terem conseguido se livrar da condição de opressor, de potência imperialista e colonizadora.

"A França investiu recursos econômicos, financeiros, em projetos, em ex-colônias na África e em outras regiões do mundo, mas nunca teve a preocupação, de fato, de estabelecer uma relação com a população local, com os jovens desses países. Tentar mostrar, de fato, de que maneira os seus esforços poderiam contribuir para o progresso local", comentou o professor.

O apoio popular a movimentos de transição política na região do Sahel e distanciamento da Europa é indicativo de que a sociedade está cansada do imperialismo francês, opinaram ambos os analistas.

"O povo argelino é mais incisivo, mais de ir para cima, não aceitar qualquer coisa. E é uma história muito marcada por massacres […] o argelino não era considerado humano [pelos franceses]. Ele ainda não é, mas durante a colonização você tem ali todo o poder, todo o controle e domínio de um povo, não só do território, mas de um povo", declarou a internacionalista.

Velasco citou ainda a falta de comunicação e cooperação diplomática entre os dois países referente à comunidade argelina na França, o que suscitou a deportação de imigrantes sem negociação prévia para a Argélia, que não aceitou o envio.

"Nem mesmo os canais consulares, que são os mais básicos, estão funcionando adequadamente. Isso mostra um afastamento, um esfriamento de relações."

A política de marginalização dos imigrantes argelinos, de maioria muçulmana, também prejudicou as relações entre os países, destacou a internacionalista, que ponderou que, apesar das perdas com o distanciamento com a França, a Argélia tem se preparado para outros cenários, diversificando parcerias.

Com isso, a França, que já chegou a exportar 90% de grãos e derivados para Argélia, tem cada vez menos poder comercial nessa nação, cujas importações de grãos vêm sendo supridas pela Rússia.

Nesse processo, países como a Rússia e a China vão ocupando espaços, com investimentos e parcerias estratégicas em um país com potencial de hidrocarbonetos, com população de densidade expressiva. Logo, mercado consumidor atraente e área privilegiada em termos territoriais.

"Acho que há perdas para os dois lados, mas talvez mais para a França, que é um país que já vinha acumulando perdas geopolíticas na África. Mais uma perda de possibilidade de influência, de projeção em favor de outros países, porque tem havido o avanço, por exemplo, da Rússia, de outros players. […] Em termos de relações de poder, relações de força, a França está encolhendo."

A especialista lembrou que a possível entrada da Argélia no BRICS também abre inúmeras possibilidades comerciais:

"O Brasil não produz tanto quanto a população argelina precisaria. África do Sul e China idem, mas eles podem principalmente ajudar nos trâmites comerciais ou com o financiamento pelo Banco do BRICS. Então, a Argélia estar nesse meio é muito importante."


Por Sputinik Brasil