Análise: ameaça de sanções dos EUA a autoridades brasileiras é violação grave à soberania do Brasil

Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas afirmam que a empreitada liderada por assessores de Donald Trump contra autoridades brasileiras "é uma flagrante violação da soberania do Brasil", que tem potencial para produzir o efeito inverso, levando o Judiciário a abraçar uma agenda contra a interferência externa.
Assessores do governo do presidente dos EUA, Donald Trump, pretendem levar ao líder estadunidense um pacote de sanções contra diversas autoridades brasileiras, que mira em especial o Judiciário, sobretudo o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
O pacote tenta enquadrar decisões do STF, como a derrubada de perfis que divulgam conteúdos falsos em redes sociais, como violações aos direitos humanos e abuso de poder, ignorando que uma das atribuições do órgão na defesa da Constituição Federal, por consequência, da democracia, inclui o combate à desinformação.
Além do pacote elaborado por assessores, outro integrante do governo Trump, Elon Musk, atual chefe do Departamento de Eficiência Governamental dos EUA (DOGE), propôs acionar a Lei Magnitsky, criada em 2012 para sancionar estrangeiros por violações graves de direitos humanos e corrupção, para impedir que Moraes e outros magistrados brasileiros entrem nos EUA ou façam transações financeiras no país.
A empreitada acendeu o alerta de uma eventual interferência externa e desrespeito à soberania nacional, agravada pelo fato de que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) se licenciou recentemente do cargo para morar nos EUA, onde tem contato com redes de ultrarradicais, afirmando que tomou a medida para se dedicar em tempo integral a convencer o governo Trump a atuar pela anistia do pai, Jair Bolsonaro, e outros denunciados por tentativa de golpe de Estado.
À Sputnik Brasil, Williams Gonçalves, professor de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), destaca que o governo norte-americano, por meio de suas instituições, pode aplicar sanções a indivíduos sob diferentes alegações, para fazer valer sua soberania. Porém, ele afirma que coisa diferente é aplicar sanções ao Judiciário brasileiro.
"Isso não pode, porque isso viola a soberania brasileira. Isso viola a autoridade, o controle que o Estado brasileiro tem sobre as suas instituições. E o conceito de soberania é justamente aquele que não reconhece nenhum poder externo", explica.
Ele acrescenta que o Brasil não pode se submeter, em hipótese alguma, à soberania de outro país, e que, evidentemente, "uma atitude ousada, atrevida como essa, de parte de outro governo, no caso, o governo dos EUA, afeta as relações diplomáticas".
"Não há como não afetar, porque, como eu já disse, essa tentativa de enquadrar, de punir, de chamar atenção do sistema judiciário brasileiro é uma flagrante violação da soberania do Brasil. E a diplomacia brasileira deve reagir a essa tentativa de violação", afirma.
Gonçalves destaca que, se os ministros do STF vão acusar, no cumprimento do seu dever funcional, essa tentativa de invasão, se vão se pronunciar respondendo ou se vão se deixar intimidar e vão alterar o seu comportamento jurídico, ainda é uma coisa a se observar.
"Eu espero que não. Eu espero que os juízes da Suprema Corte honrem o mandato que eles receberam de guardiães da Constituição brasileira e, em hipótese alguma, se deixem intimidar, alterem o seu comportamento para evitar acusações ou tentativas desse teor. Mas nós não podemos nos antecipar e responder pelas pessoas. Mas a dignidade do cargo exige que eles sejam inteiramente indiferentes a essas pressões externas. Da mesma forma que são indiferentes às pressões internas que tentam evitar que réus sejam condenados ou que acusados sejam transformados em réus."
Com relação à intenção de Musk de acionar a Lei Magnitsky contra Moraes e outros magistrados brasileiros, Gonçalves afirma que Musk, antes de ser um membro do governo Trump, é um empresário cujas empresas estão espalhadas por todo o mundo, pelo Brasil, pelos países da União Europeia, em toda parte.
"E como os nossos juízes afirmaram de uma maneira muito clara, as empresas dele [Musk] operando no mercado brasileiro, operando no Brasil, devem respeitar as leis brasileiras, assim como as empresas brasileiras que eventualmente operem nos EUA respeitam as leis dos EUA. Isso é uma coisa muito simples, portanto não pode haver nenhum grau de comparação entre a ação jurídica sobre as empresas desse senhor que violaram de alguma forma as leis brasileiras com a ação dos juízes da Suprema Corte em relação a esses criminosos que tentaram promover um golpe de Estado. São duas coisas completamente diferentes, não há nenhum paralelo possível, não há o que comparar. É como comparar abacaxi com melancia."
Já com relação à possibilidade de a atuação de Eduardo Bolsonaro nos EUA contribuir para uma interferência externa no Brasil por parte dos EUA, Gonçalves afirma que não há como prever o que o deputado vai fazer ou pretende fazer.
"Esse senhor, esse deputado, é uma pessoa de baixo nível intelectual, é um indivíduo que tem, a exemplo do pai dele, sérias dificuldades cognitivas e não tem muito controle sobre a realidade. Haja visto que, no início do governo de seu pai, ele pretendia ser embaixador do Brasil [nos EUA], argumentando com uma razão que, inicialmente, parecia até irônica, debochada, mas depois se verificou que era uma coisa bizarra mesmo de uma mente primitiva, pois ele alegava que tinha experiência de viver nos EUA, porque havia fritado bifes, hambúrgueres em carrocinhas dos EUA", afirma.
Entretanto, ele afirma que o deputado, "indiscutivelmente, conseguiu se infiltrar nesse movimento de extrema-direita mundial, capitaneado por Steve Bannon, supostamente representando todos os extremistas brasileiros".
"Então, apesar de ser quem é, também não se pode subestimar completamente a capacidade que ele tem de criar problemas. Pode não realizar o seu intento, pode não voltar para o Brasil vingando o pai e comandando tropas estrangeiras, provavelmente isso ele não conseguirá fazer, mas pode ser que crie alguns embaraços, que crie alguns problemas. Aí não tem jeito, é esperar para ver."
À reportagem, Afonso de Albuquerque, cientista político da Universidade Federal Fluminense (UFF), avalia que de fato existe um movimento situado em certos setores do governo estadunidense no sentido de interferir na soberania nacional brasileiro, mas ele destaca que é preciso qualificar essa questão.
"Esse movimento não se inicia com o Trump, de alguma forma ele está presente nos antecessores do Trump. O argumento dos direitos humanos sempre fez parte da retórica desses agentes. Essa atuação, por exemplo, se deu no caso da Operação Lava Jato, em torno de uma agenda da corrupção que foi conduzida a partir dos EUA violando a soberania nacional", afirma.
Ele destaca ainda ser necessário entender que dentro do governo Trump existem grupos muito diferentes, por isso a atuação do presidente estadunidense não é coerente e sistemática.
"O grupo do Trump manipula informações diferentes e eventualmente contraditórias ao mesmo tempo. Então é interessante notar que [...] Trump fez um elogio ao sistema eleitoral brasileiro [no dia 25], o que significa Alexandre de Moraes."
Albuquerque acrescenta não considerar que o Brasil, no momento, seja o foco dos EUA, uma vez que, aparentemente, o governo Trump está muito mais interessado em afrontar a Europa e o Canadá do que construir uma ruptura com o Brasil.
Apesar disso, ele afirma que "como tentativa de intimidação, essa é uma que tem todo o potencial para produzir o efeito inverso".
"Obriga o Judiciário brasileiro a abraçar uma agenda da soberania, que alguns anos atrás eu não diria que esse Judiciário abraçaria. Eu diria, com certeza, que ele não abraçaria, porque ele não o fez. Porque quando se considera o caso da Lava Jato e também o Mensalão, o Judiciário Brasileiro se coloca como agente de, digamos assim, representantes de interesses internacionais, que em última análise são os interesses dos EUA."
Sobre a atuação de Eduardo Bolsonaro nos EUA, Albuquerque afirma que o deputado "é, como o pai, um sujeito de parca inteligência", com "baixo poder de avaliação da situação, porque olha para a situação a partir de lentes ideológicas muito estritas".
"Dentro da análise do Eduardo Bolsonaro, o Trump é um presidente de extrema-direita e o presidente de extrema-direita vai atuar em favor de outros agentes de extrema-direita. Mas não é assim que funciona. Muitas vezes os atores de um país 'x' beneficiam atores de um campo ideológico diverso em outro país, caso isso se revele mais conveniente do ponto de vista dos seus interesses. Eu acho que não existe evidência, a priori, de que o Brasil seria um alvo prioritário do Trump", afirma.
Ele acrescenta que, mesmo que Trump decida tomar medidas em relação ao Brasil, seu governo terá que pesar as consequências do ataque.
"E eu acho que o Brasil opera no sistema internacional como uma espécie de facilitador [...]. O Brasil transita muito bem, por exemplo, em uma relação com os países BRICS, mas também com a União Europeia, que odeia a Rússia. Então esse agente é um agente muito valioso do ponto de vista do cenário internacional, porque não se ataca um país por atacar, se ataca o país para construir uma negociação em termos razoáveis [...]. E para construir uma relação razoável é preciso que existam mediadores, eu acho que o Brasil oferece isso."
Nesse contexto, ele afirma que Eduardo Bolsonaro faz "uma péssima avaliação", já que todas as indicações do governo Trump vão no sentido de que ele não está dando corda para a retórica bolsonarista.
Segundo o especialista, na realidade, o que as ações de Eduardo Bolsonaro estão fazendo é construir no Brasil "as bases de um movimento de autoafirmação soberanista", já que todos aqueles que estão "batendo de frente com Trump" estão ganhando popularidade dentro do seu próprio território por combaterem uma ameaça estrangeira. Enquanto isso, avalia o especialista, Eduardo Bolsonaro "está se apresentando como sócio de uma ameaça estrangeira".
"Eu imagino, inclusive, que do ponto de vista do Trump, Lula seja um interlocutor muito melhor do que Bolsonaro. Bolsonaro não acrescenta nada ao Trump. O aliado incondicional é alguém de quem você não precisa. Aquele que você tem que conquistar eventualmente oferece muito mais oportunidades de negociação e de avanços do ponto de vista de agenda."
Por Sputinik Brasil