Belarus e as criptomoedas: ativos prometem gerar renda e abrir brechas no poder sancionador dos EUA

Tema cada vez mais recorrente na geopolítica mundial, a possibilidade do uso de criptomoedas por parte do Estado como alternativa futura ao dólar voltou às manchetes dos jornais com o anúncio de Belarus de investir no setor a partir do excedente de energia do país.
O presidente de Belarus, Aleksandr Lukashenko, anunciou no início de março que pretende desenvolver uma indústria para produção de criptomoedas no país com uso da reserva de energia elétrica.
O podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, desta quinta-feira (27) conversou com especialistas no assunto. O professor do departamento de Evolução Econômica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Daniel Santos Kosinski avaliou que o país busca tornar-se uma espécie de centro para atividades e serviços relacionados às criptomoedas, principalmente por parte de empresas russas que buscam escapar das sansões do Ocidente. Isso porque o país tem farta fonte de energia elétrica, um insumo vital para a operação das criptomoedas:
"Uma única transação com Bitcoins [principal criptomoeda no mundo] hoje consome mais ou menos a quantidade de energia elétrica que uma residência média nos Estados Unidos consome em um mês e meio. Um consumo de energia completamente exorbitante. Países onde a energia elétrica é muito abundante e muito barata levam enorme vantagem nesse processo".
Logo, acrescentou ele, o lucro da operação para Belarus seria muito elevado, sendo a energia elétrica transformada em Bitcoin, que é vendido e transformado em moeda nacional. O professor da UERJ alertou, no entanto, que se a Rússia for readmitida ao sistema financeiro internacional americano, a situação pode mudar de figura:
"Os russos não terão mais por que recorrer à Bitcoin, a criptoativos para fazer transferências, se voltarem a acessar o sistema financeiro internacional de forma normal, de forma regular".
Mas não apenas para fugir de sanções serve a moeda digital, que tem sido opção para governos que visam desencadear processos de enriquecimento e desenvolvimento, apontou o engenheiro de Machine Learning e autor do livro "101 Perguntas sobre Bitcoin", Breno Brito. Ele deu como exemplo o país centro-americano de El Salvador, que adotou criptomoeda para atuar junto à moeda oficial, o dólar:
"[...] está indo conforme esperado, no sentido de que ele está funcionando gradativamente, tendo uma adoção maior. Mas é de se esperar que uma coisa tão nova, tão diferente, tão revolucionária, demore um pouco mais para ser adotado", opinou Brito.
O professor da UERJ, porém, ponderou que em El Salvador o que correu na prática foi a criação de uma versão digital da moeda nacional:
"Não houve uma adoção do bitcoin como moeda legal em El Salvador. O que houve foi uma adoção do bitcoin como possível meio para fazer pagamentos que, na verdade, estão em dólares", disse ele, citando exemplos similares como a China, com o RMB digital, e a Nigéria com o eNaira.
Ele mencionou que alguns países africanos e caribenhos também adotaram criptomoedas em busca de prosperidade financeira, com resultados ainda insatisfatórios. Entretanto, as criptomoedas têm tido êxito em "abrir brechas no poder sancionador que os americanos exercem hoje", comentou.
"Elas [criptomoedas] são excelentes meios para realizar essas transações financeiras transfronteiriças sem identificação imediata de quem é que está realizando essas transações [...] porque esses sistemas não são diretamente controlados por autoridades nacionais".
Sobre as vantagens de uma criptomoeda para chamar de sua, Brito destacou o maior controle financeiro sobre a população e transparência, que facilita o combate a atividades ilegais e crimes financeiros pelo Estado.
"Hoje 99% da lavagem de dinheiro acontece em dólares, não em Bitcoin, porque o Bitcoin é muito mais rastreável do que o dólar. Com o dólar, você pega o dinheiro, coloca na sua mala, leva embora e paga alguém. Ninguém consegue saber de onde é que veio. Você consegue pagar tudo, usar em qualquer lugar. Quando você usa e você paga alguém com o Bitcoin, ele consegue ver, rastrear de onde essa moedinha veio até chegar no momento da mineração, quando o minerador minerou aquela moeda pela primeira vez".
Estudioso do assunto desde 2017, Brito explicou que o uso generalizado das criptomoedas exige uma mudança de paradigma.
"A gente tem um paradigma na nossa cabeça onde a gente está acostumado com dinheiro de papel, com coisas físicas e de repente a gente está falando de criptografia, a gente está falando de matemática, a gente está falando de sistemas distribuídos, que é algo muito complexo para alguém que nunca viu [...] assim que esse primeiro, esse susto inicial for superado, ele é tão simples quanto usar um Pix".
No Brasil, existem projetos para que impostos sejam pagos em Bitcoin, acrescentou o engenheiro:
"Nesta semana mesmo teve representantes do vice-presidente [Geraldo] Alckmin comentando a necessidade e possibilidade de colocar o Bitcoin como reserva financeira, que diferente de ser uma moeda, seria como o ouro".
Kusinski destacou que muitos países já têm regulações nacionais para arbitrar o uso desses instrumentos para evitar lavagem de dinheiro, evasão de impostos, remessas internacionais não autorizadas, crimes organizados de maneira geral, devido ao anonimato da rede:
"Você não precisa se identificar para fazer uma transação no Bitcoin, como você precisa se identificar para abrir uma conta num banco. Então os governos nacionais impõem regulações sobre isso, embora também a gente saiba que no sistema financeiro tradicional, com todas as regulações, identificações e etc, também se faz todo tipo de atividade ilegal".
Desafios e entraves
A falta de uma política monetária no Bitcoin é um dos obstáculos para o avanço da moeda virtual no mundo, que a torna extremamente volátil, pontuou Kosinski, sem possibilidade de intervenção, alteração e responsabilização:
"Moeda é uma questão de poder, de imposição pelas autoridades constituídas, pelas autoridades que detêm os meios de impor leis, de impor comandos, de impor uma ordem sobre um determinado território".
Largamente utilizadas como ativos financeiros, as mais de 20 milhões de criptomoedas no mundo hoje são operadas com a finalidade de obteção de lucro em moeda nacional, lembrou o professor, e seu caráter altamente especulativo e volátil deve mantê-las à margem do sistema financeiro tradicional:
"Elas não estão diretamente ligadas às ações de nenhum governo, a nenhum ativo produtivo, nenhum recurso natural real, material, vamos dizer, como petróleo, como ouro, como qualquer bem concreto".
Para o professor da UERJ, a visão libertária que gerou o Bitcoin, apostando no fim das moedas governamentais e substituição por moedas privadas, como escolha dos indivíduos, não tem bases na realidade observável, históricas nem sociológicas:
"Ninguém tem qualquer controle sobre a quantidade de Bitcoins disponíveis, e logo sobre as relações que o Bitcoin encontrará frente aos bens e serviços [...] O fato de que você não tem nenhuma autoridade por trás dele, que detenha meios coercitivos para fazer com que o uso do Bitcoin seja hegemônico na sociedade", completou ele.