Guerra às drogas, paz às armas: hipocrisia dos EUA fortalece narcotráfico na América Latina?

Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam que "seria desejável" que o mercado de armas dos Estados Unidos fosse melhor regulamentado, mas que não há interesse nisso porque a indústria de armas norte-americana "lucra muitíssimo com qualquer tipo de conflito", sobretudo com a guerra às drogas.
Em entrevista à mídia na semana passada, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Victor Santos, afirmou que relatórios de inteligência apontaram que quase a metade dos fuzis apreendidos no estado vêm dos EUA.
A declaração veio na esteira da crítica feita aos EUA pela presidente do México, Claudia Sheinbaum, que afirmou que por negligência dos fabricantes, armas americanas vão parar nas mãos de integrantes de cartéis de drogas mexicanos, causando forte impacto na segurança pública do país latino-americano.
Em entrevista à Sputnik Brasil, Daniel Hirata, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI) da instituição, explica que a política de guerra às drogas promovida pelos EUA demonstrou "ser historicamente absolutamente ineficaz" para o controle de drogas das organizações criminosas, além de promover uma série de interferências nos países afetados pela atuação norte-americana.
"Nos casos mais dramáticos, onde tivemos o Plano México e o Plano Colômbia, esses dois países testemunharam um aumento, uma intensificação dos conflitos, uma verdadeira crise humanitária, assim como o fortalecimento dos grupos armados presentes nesses lugares", observa o especialista.
No recorte do Brasil, ele afirma que armas leves são fabricadas em território nacional e, por uma série de caminhos das cadeias de distribuição, vão, às vezes, entrar e sair do país, ou se manter dentro do país, ou, então, aparecer nas mãos dos criminosos através do mercado secundário, que é o mercado que advém das apreensões.
"Mas há também o mercado de armas pesadas e parte desse mercado vem, realmente, dos EUA. Seria desejável, sim, que esse mercado de armas pesadas fosse melhor regulamentado, rastreado. Há possibilidade total de que armas e munições sejam rastreadas desde a sua fabricação até a utilização e isso, realmente, seria importante para o enfrentamento das organizações criminosas do Brasil."
Ele afirma que as negociações vigentes entre o governo do estado do Rio de Janeiro e o governo norte-americano para reconhecer a facção carioca Comando Vermelho como uma organização criminosa transnacional não traz detalhes de como isso será feito.
"É uma carta de intenções vaga que visa transformar organizações brasileiras em organizações que possam ser passíveis de serem investigadas pelo governo norte-americano. E, como já dito, isso, por princípio, não quer dizer nada, a não ser mais uma reedição dessa série de atuações completamente desastrosas do governo dos EUA em países estrangeiros", afirma Hirata.
Ele enfatiza que o controle de armas e munições deveria, sim, ser feito em escala internacional, porque é um mercado transnacional e, ao mesmo tempo, atuando nas cadeias de valor que conectam produção, distribuição e compra e venda dessas mercadorias.
"Não sei se é exatamente esse o escopo de atuação do que vem sendo negociado, mas, de toda maneira, em princípio, cabe uma cautela e uma atenção, transparência pública, para que seja clara qual é a questão que envolve esse tipo de negociação."
Thiago Rodrigues, professor associado no Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF), afirma à reportagem que a questão do comércio de armas deve ser entendida pela lógica do capitalismo.
"São dois dos maiores mercados globais do capitalismo, o de armas e o de drogas. Tanto de drogas legais quanto de ilegais, tanto das armas legais quanto das armas ilegais. [...] Essas duas grandes indústrias do capitalismo têm uma interligação na medida em que o mercado das drogas ilegais articula um conflito em si, que é a chamada guerra contra as drogas, guerra contra o narcotráfico, e que é a justificativa para que polícias e Forças Armadas de muitas partes do globo se armem para combater esses grupos narcotraficantes e que os grupos narcotraficantes se armem para responder aos ataques dos Estados e também para competir entre eles", explica.
Ele acrescenta que a indústria de armas, principalmente de pequeno e médio porte, "lucra muitíssimo com qualquer tipo de conflito", inclusive e sobretudo com a guerra às drogas, logo "a continuação de uma política de combate ao narcotráfico centrada na ideia do conflito, da repressão militarizada, interessa à indústria de armas".
Diante disso, avalia Rodrigues, dificilmente haverá alguma mudança de abordagem por decisão de países, principalmente os países centrais, onde estão as principais fabricantes de armas, como os EUA.
"Sendo um mercado tão importante, ele não vai ser coibido pelos governos dos EUA. Nem o [Donald] Trump, nem nenhum [presidente dos EUA]. [...] O fato é que não existe nenhum poder político nos EUA que possa abrir mão do apoio da indústria bélica e da indústria de armas em geral."
Ele afirma que somado a isso está o apoio da indústria bélica a campanhas políticas e o impacto que o discurso a favor do porte de armas tem na população norte-americana, não só entre a direita, mas em boa parte da sociedade, que afirma que o porte de armas é parte de seus direitos e de sua cultura.
"Então, essa relação é tão firme entre a indústria de armas, poder político e a sociedade civil estadunidense, que é muito difícil que haja alguma mudança em termos de restrição maior na prática, porque o controle de fronteiras, o controle do mercado, o controle de vendas impactam na indústria. Quanto menos controle tiver, melhor, porque pode vender amplamente", explica.
Segundo ele, a venda ampla de armas traz lucratividade e também desvincula ou desresponsabiliza a indústria de armas dos EUA de saber qual é a destinação das armas que são vendidas.
"Porque ela [fabricante] produz as armas legalmente, as vende legalmente, e os desvios que vão acontecer dali para frente não são mais responsabilidade da empresa."
Ademais, Rodrigues aponta que o discurso de guerra às drogas é muito poderoso do ponto de vista político, porque é hegemônico nas sociedades, não apenas dos EUA, mas em vários países do mundo.
"A maioria absoluta das pessoas, independente da classe social, enxerga que as drogas ilegais são um perigo para a saúde pública, para a saúde individual e até mesmo para questões espirituais, religiosas, etc. Então o apoio que existe a medidas repressivas à produção, comércio e uso de drogas é sempre uma moeda política importante."
De acordo com Rodrigues, os Estados latino-americanos são os principais vetores de violência contra suas próprias populações, "não toda a sociedade, obviamente, mas contra as maiorias, que são sempre as maiorias mais pobres e racializadas".
"Isso é uma regra que acompanha todos os países da América Latina. Os Estados promovendo uma violência seletiva contra uma parte da população que é controlada por vários mecanismos e um desses mecanismos é o da violência."
Nesse contexto, ele afirma que a circulação de armas é o que faz com que essas táticas de controle violento aconteçam, e entre os grupos ilegais é o que potencializa que eles cresçam, façam esse grande enfrentamento entre eles e com o Estado.
Ele frisa que as medidas de controle para mudar esse cenário "são conhecidíssimas", e que uma delas é fazer um controle efetivo da venda de armas, mas afirma que elas não vão acontecer.
"Isso não vai acontecer porque não é desejo do governo dos EUA. [...] Essas medidas enfrentam muita oposição e fazem com que essas propostas, os candidatos que defendam isso, percam votos. Medidas que são conhecidas e defendidas são, por exemplo, a proibição da venda de armas de grosso calibre para civis dentro dos EUA, a proibição de vendas de armas de uso estritamente militar para civis, a limitação da venda legal de munição, a limitação da quantidade de armas por pessoas, isso tudo na venda do varejo americano. Porque uma boa parte significativa das armas que saem ilegalmente dos EUA são compradas legalmente e depois exportadas ilegalmente pela fronteira mexicana ou por via marítima. Então essas são medidas importantes internas nos EUA."
Já do ponto de vista da exportação, ele afirma que uma medida que poderia ser tomada é impor um controle maior, uma prestação de contas pública, da quantidade de armas que está sendo exportada por essas grandes indústrias.
"E isso não seria difícil de fazer, porque, volto a dizer, as armas são produzidas legalmente. É diferente de cocaína ou uma droga ilegal, que já é produzida ilegalmente, de origem ela é ilegal. Um fuzil não tem uma origem ilegal, ele é feito em uma fábrica com endereço, com personalidade jurídica, que paga impostos. Então, em tese, seria muito mais fácil controlar um produto legal [...], acompanhar esse fluxo de armas para poder saber quais são os lugares, quem são os clientes, e como é que isso chega nos países e dentro dos países como é que isso vai ser vendido. É possível fazer? Sem dúvida. Há interesse da indústria que se faça a isso? Não. Porque são justamente perguntas inconvenientes para quem quer o mínimo de controle possível na venda de armas."
Por Sputinik Brasil