Análise: ausência de política de Estado de Milei prejudica comércio da Argentina com o Brasil
Especialistas afirmam que decisão do presidente argentino de reduzir o papel do Estado na economia, somada a questões ideológicas, esfriaram o comércio entre os países, e frisam que EUA e China não garantem uma alternativa ao Brasil.
O governo do presidente argentino, Javier Milei, completa um ano nesta terça-feira (10), marcado pelo esfriamento das relações políticas e comerciais com o Brasil e afastamento do Mercosul.
Segundo dados divulgados na semana passada pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços do Brasil (MDIC), entre janeiro e outubro deste ano foi registada uma queda de 24,8% nas exportações brasileiras para a Argentina, maior parceiro comercial do Brasil na América do Sul e terceiro no cenário global, atrás apenas de China, em primeiro lugar, e EUA, em segundo.
Segunda a pasta, entre janeiro e outubro, as exportações do Brasil para a Argentina totalizaram US$ 11,2 bilhões (cerca de R$ 67,2 bilhões), uma queda em relação aos US$ 14,9 bilhões (cerca de R$ 89,4 bilhões) registrados no mesmo período do ano passado. Em contraponto, o Brasil aumentou em 9,7% a importação de produtos argentinos, totalizando US$ 11,14 bilhões (cerca de R$ 66,8 bilhões).
A balança comercial do Brasil com o país vizinho continuou superavitária, mas com o saldo caindo de US$ 4,75 bilhões (R$ 28,93 bilhões) para US$ 69 milhões (R$ 417,15).
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam se a queda no comércio entre os países pode ser uma tendência ao longo de toda a gestão de Milei na Casa Rosada.
Bruno Lima Rocha, cientista político, jornalista e professor de relações internacionais, avalia que as condições de importação da Argentina diminuíram em decorrência da crise econômica e da desvalorização do peso em relação ao dólar, o que afetou a complementaridade da indústria argentina com a brasileira.
Ele afirma que a dimensão ideológica afetou a relação entre Brasil e Argentina, mas que o principal fator que levou ao cenário atual é a falta de uma política industrial e de integração no governo Milei.
"Não se faz política de importação com caixa próprio, pouquíssimas empresas no mundo fazem isso. Recorrem a linhas de apoio do Ministério de Comércio Exterior ou uma casa [pasta] semelhante, que no caso da Argentina é a Secretaria de Comércio. Então isso aí também incide. Sem uma política de Estado para garantir a complementariedade e as importações é muito difícil fazer qualquer coisa. Pode ver o colosso que é o agro brasileiro, que não existiria se não fosse o Plano Safra, por exemplo", afirma.
Rocha ressalta que a ausência de uma política de Estado afeta a implementação de um sistema de trocas necessário para importação e exportação.
"Porque cada produto que é vendido para um país precisa de uma série de adequações à legislação daquele país e vice-versa, e isso não se faz de uma hora para outra, se perde de uma hora para outra, esse é que é o problema. Para fazer demora muito e para perder é rapidinho. Então, sim, o não governo ou desgoverno é a dimensão material concreta da ideologia nefasta de Javier Milei, de não querer a integração latino-americana e subordinar diretamente aos EUA como o grande hegemon do Norte [global]."
Cairo Junqueira, professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e pesquisador do Observatório de Regionalismo (ODR), considera que a tendência atual de esfriamento nas relações comerciais entre os países deve se manter, porque tem muito a ver com as mudanças internas da Argentina que Milei vem fazendo.
Segundo ele, "questões comerciais são muito pragmáticas e por vezes ficam à margem de aspectos ideológicos".
"O distanciamento entre Milei e Lula é importante e deve ser considerado, mas a situação econômica explica mais esse dado recente. Veja, por exemplo, que Milei disse que sairia do Mercosul, mas semana passada esteve presente na reunião com Von Der Leyen da [União Europeia] UE para tratar do acordo [do Mercosul] com a UE em si. Ou seja, alguns interesses se sobressaem aos embates ideológicos em determinados momentos como esse."
Questionado se a aproximação com os EUA ou com a China pode oferecer a Milei uma alternativa ao Brasil, Junqueira afirma que, embora ambos os países sejam parceiros importantes para a Argentina, não há alternativa ao Brasil.
"Digo isso porque os dois [Brasil e Argentina] estão no Mercosul, fazem fronteira, têm relações históricas já consolidadas. Obviamente, hoje, o mercado é globalmente mais integrado em virtude das cadeias globais de valor, entretanto, por critérios nitidamente geográficos, de infraestrutura e mesmo diplomáticos, os dois países mantêm uma relação de interdependência. Vale lembrar o contrário: também interessa ao Brasil o comércio com a Argentina, são grandes parceiros", explica.
Para Beatriz Bandeira de Mello, cientista política e doutoranda em relações internacionais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), por ora, a tendência de afastamento entre os países existe, "mas ela não é irreversível, dado o peso comercial do Brasil para a economia argentina".
"A opção em manter esse afastamento, no longo prazo, pode causar o congelamento das relações entre os dois países, o isolamento argentino na região, e ruídos nos projetos de integração regional. Com isso, Milei ainda pode causar problemas internos, sobretudo com a indústria local, que é a maior beneficiária das exportações ao mercado brasileiro. Contudo, é possível dizer que o governo argentino tem adotado certa dose de pragmatismo nas relações com o Brasil, dada, por exemplo, a assinatura do Memorando de Entendimento para exploração do gás natural na [reserva de] Vaca Muerta e a participação na Cúpula do G20", afirma.
Mello enfatiza que, em termos práticos, tanto a situação econômica da Argentina quanto o aspecto ideológico de Milei contribuíram para o distanciamento atual. Ela frisa que, no último ano, a alta inflação e a crise econômica que a Argentina enfrenta se tornaram entraves às tratativas comerciais, somadas às propostas do governo em diminuir o gasto público e o papel do Estado na economia.
"Em termos ideológicos, Milei tem priorizado acordos bilaterais, o fortalecimento do setor agrário e a busca pela diversificação de parcerias, com foco na Europa, Israel e nos EUA. A opção por se afastar de governos considerados 'comunistas', incluindo o Brasil, pesou nessa diminuição, tornando a agenda entre os dois países restrita a negociações correntes, sem grandes anúncios ou acordos."
Ela acrescenta que, por outro lado, as exportações do país vizinho para os EUA cresceram 12% e Milei vem tentando se aproximar da Índia e do Japão, que são mercados importantes para o escoamento de produtos como o azeite e farinha de soja, e também da União Europeia, com a qual a Argentina registrou um comércio superavitário.
"A chancelaria [argentina] também atuou na abertura de novos mercados na África do Sul e na Namíbia, por exemplo, mostrando, mais uma vez, essa inclinação ao comércio bilateral."
Sobre a possibilidade de encontrar parceiros alternativos ao Brasil, a especialista afirma que a estrutura da economia argentina é baseada em uma alta concentração de produtos primários, o que torna o país pouco competitivo em mercados globais de alto valor agregado.
Ela destaca que o governo argentino tem incrementado a exportação de lítio aos EUA, fundamental para as grandes empresas de tecnologia, o que fortalece a relação entre ambos, e membros do governo já falam sobre iniciar tratativas para um acordo de livre comércio com o país do Norte.
Segundo Mello, essa possibilidade já era almejada desde o governo de Mauricio Macri (2015-2019), mas o retorno de Donald Trump à presidência dos EUA, com uma política comercial mais protecionista e contrária ao estilo de livre comércio desejado por Milei, ameaça gerar entraves nas tratativas comerciais.
"Nesse cenário, tanto o Brasil quanto o Mercosul ainda funcionam como os principais caminhos para a escoação da produção argentina, junto a outros parceiros como a China. Milei e sua equipe econômica têm percebido isso e atuam no sentido de manter as relações com o bloco e com o gigante asiático em um patamar estável. Prova disso foi a participação do presidente argentino na última Cúpula do Mercosul e o apoio, com ressalvas, ao acordo firmado com a União Europeia", conclui a especialista.
Por Sputinik Brasil