'Já perceberam que não é por aí': como será o novo governo sírio do Tahrir al-Sham?
Em menos de duas semanas, a oposição armada síria capturou as principais cidades do país, Aleppo, Hama, Homs, e a capital, Damasco. A rápida incursão resultou na queda do governo de Bashar al-Assad, que, com sua família, recebeu asilo na Rússia.
Na encruzilhada da Ásia e da Europa, por onde todos os interesses geopolíticos regionais e mundiais passam, a Síria se vê em um momento de convulsão. O que aconteceu no país e quais serão os próximos passos do próximo governo foram debatidos no episódio desta segunda-feira (9) do Mundioka, podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho.
Após treze anos de guerra civil, o governo da família Assad, iniciado por Hafez al-Assad em 1971 e mantido por seu filho Bashar al-Assad a partir de 2000, caiu. O Estado, que já foi um dos mais ricos do Oriente Médio, se vê passando por uma reorganização sem precedentes.
As origens dessa queda remontam aos protestos da Primavera Árabe em 2011. Inicialmente reprimidos pelo governo, os manifestantes decidiram por uma revolta armada, que envolveu diversos grupos, inclusive extremistas, se tornou uma guerra civil e só se estabilizou após a entrada da Rússia no conflito em 2015 com o intuito de eliminar os terroristas do Daesh, o autoproclamado Estado Islâmico (ISIS, organização terrorista proibida na Rússia e em vários outros países), e seus aliados.
A entrada russa permitiu ao governo sírio recapturar territórios perdidos tanto para os terroristas jihadistas quanto para oposição armada, como a cidade de Aleppo. A recuperação governista, pro sua vez, motivou a conclusão de um acordo de cessar-fogo em 2016 mediado pela Rússia, Turquia e Irã.
O que aconteceu na Síria?
Mudanças no tabuleiro geopolítico, como o início da operação especial russa contra as forças neonazistas na Ucrânia, a recusa de Assad de repatriar 3,5 milhões de refugiados em solo turco e os ataques israelenses contra o Irã e seus aliados abriram uma brecha para uma nova ofensiva da oposição armada síria, formada por diferentes grupos contrários ao governo.
Os primeiros ataques partiram da porção noroeste do país, sendo liderados principalmente pelo grupo sunista salafista Hay'at Tahrir al-Sham (HTS, ou Comitê da Libertação do Levante em tradução livre), que se estabeleceu como o Governo de Salvação Sírio. Nessa frente também atuou o o Exército Nacional Sírio, grupo financiado pela Turquia.
No dia 30 de novembro, ambos os grupos capturaram a cidade de Aleppo, com o HTS se deslocando para o sul em direção a Hama, capturada no dia 5 de dezembro e em seguida a Homs, capturada no dia 8 de dezembro.
Ao sul do país, diferentes grupos de oposição aproveitaram a oportunidade e se uniram sob a bandeira da Sala de Operações do Sul iniciando um ataque à capital, Damasco, a partir dessa direção.
À leste, o Exército de Comando Revolucionário, grupo de oposição síria treinado na base militar estadunidense de Al-Tanf, também iniciou uma incursão capturando a cidade de Palmyra e se dirigindo também à capital.
As três principais forças convergiram em Damasco entre os dias 7 e 8 de dezembro, finalizando o governo de Bashar al-Assad.
O que o futuro guarda para a Síria?
Najad Khouri, economista com MBA em relações internacionais e pesquisador sênior do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Oriente Médio (GEPOM), afirmou que embora o novo governo tenha advindo de uma guerra civil, o momento é fértil para a formação de um novo governo para a Síria.
"Houve um apoio geral maciço da população, não houve resistência. As forças armadas foram embora, houve um acordo para não ferir praticamente ninguém", disse ao programa.
Segundo o especialista em política do Oriente Médio, o Tahir al-Sham como principal grupo armado dessa nova fase do conflito é quem "vai definir" a direção que a Síria vai tomar.
De fato, o líder do HTS, Abu Mohammad al-Julani, confiou a Mohammed al-Bashir o cargo de formar um governo de transição. Até lá, o primeiro-ministro Mohammad Ghazi al-Jalali permanece no cargo representando as instituições governamentais na mesa de negociações.
Amanda Marini, mestre e doutoranda em ciências militares e pesquisadora do Núcleo de Avaliação da Conjuntura (NAC), lembrou durante sua fala ao Mundioka que embora o grupo tenha um histórico de violência, seu discurso mudou nos últimos tempos.
Agora, o HTS clama por uma união árabe, respeito às antigas instituições e burocracias e que o novo presidente deverá ser escolhido pelo povo sírio. Marini, no entanto, ressaltou que ainda será preciso ver se as ações condirão com as falas.
Nesse sentido, Khouri afirmou que em muitas regiões de minorias étnicas e religiosas, emissários do HTS chegaram pregando o respeito e afirmando que "vieram para construir e prometendo integridade territorial e física a todas as seitas, a todas as pessoas, e pedindo um tempo para que isso aconteça."
"O Tahir al-Sham", diz o especialista, "aprenderam a lição, já perceberam que não é por aí".
"Quando o Estado Islâmico ocupou a parte da Síria, o mundo inteiro foi contra: os Estados Unidos, o Irã, a Arábia Saudita, Israel. Ninguém quer um governo radical."
Ou seja, se Julani quer ter sucesso na formação de um Estado sírio e não atrair a condenação da comunidade internacional, deverá atuar de maneira moderada. "E se você olha para as bandeiras, as bandeiras são puramente sírias. Não estão dizendo Allahu Akbar ou La ilaha illa Allah, não estão repetindo slogans islâmicos", disse Khouri.
De acordo com os relatos que recebe, Khouri diz que a oposição armada síria está cumprindo sua promessa de unificar o país em vez de criar mais sectarismo. "Está havendo uma transformação com pacifismo e não com vingança ou com matança ou com invasões."
"A mensagem desse novo grupo, que tomou conta do poder, é de construção e de amizade, e não de destruição ou brigas."
Símbolo dessa nova era, talvez, seja o fato de que muitos refugiados sírios que estavam no Líbano, Jordânia e Iraque já tenham começado a voltar para suas cidades, destacaram os analistas. Ao mesmo tempo, outros decidiram deixar o país após a derrubada do governo Assad.
Para Marini, é preciso que esse governo de transição mantenha sua força uma vez que há uma multiplicidade de atores envolvidos, tanto domésticos como estrangeiros.
"A Síria precisa de um governo forte que consiga sarar as feridas, esses anos de tanta tristeza que o povo passou, e manter o monopólio da legítima violência", destacou a pesquisadora de ciências militares. "Se não, podemos ter um Estado fragmentado."
Por Sputinik Brasil