HISTÓRIA

Contrabando e Estado falido: saiba por que EUA desnuclearizaram a Ucrânia após a queda da URSS

Por Sputinik Brasil Publicado em 06/12/2024 às 10:12
© Sputnik / Aleksandr Makarov

A Casa Branca rechaça relatos da mídia e nega a transferência de armas nucleares para a Ucrânia. Saiba por que, após a queda da URSS, EUA se engajaram ativamente para transferir os arsenais nucleares soviéticos para Moscou e pagaram compensações financeiras para Kiev assumir o status de país não nuclear.

Nesta semana, a Casa Branca rechaçou relatos da mídia e negou estar considerando a entrega de armamentos nucleares para a Ucrânia. De acordo com o conselheiro de Segurança Nacional da administração Biden, Jake Sullivan, os EUA focarão no envio de armamentos convencionais para Kiev, reportou a Reuters.

"Isso não está em consideração, não. O que estamos fazendo é aumentando as capacidades convencionais da Ucrânia para que eles consigam se defender de maneira eficiente e conseguir lutar com os russos, mas sem capacidades nucleares", disse Sullivan.

Anteriormente, reportagem veiculada pelo jornal The New York Times sugeriu que os EUA poderiam enviar armas nucleares para a Ucrânia, a fim de providenciar uma "garantia de segurança" a Kiev antes do fim do mandato de Biden.

Jake Sullivan durante coletiva na Casa Branca, em Washington (DC). EUA, 22 de maio de 2024
Jake Sullivan durante coletiva na Casa Branca, em Washington (DC). EUA, 22 de maio de 2024

A reportagem se baseia em fontes anônimas, que consideram a "devolução" de armas nucleares à Ucrânia como uma "dissuasão instantânea" contra a Rússia, apesar de cientes das "consequências sérias" de uma decisão dessa envergadura.

O porta-voz do governo russo, Dmitry Peskov, reagiu à publicação, lamentando a "absoluta irresponsabilidade dessas considerações, feitas por pessoas que provavelmente tem pouco conhecimento da realidade, nem sentimento de responsabilidade compartilhada".

"Sabemos que mesmo entre as correntes mais provocadoras que querem uma escalada das tensões existem grupos marginais extremistas", considerou Peskov, enfatizando que a reportagem se baseava em fontes anônimas. "Essa ideia provavelmente vem de grupos extremistas."

Após a queda da URSS, cerca de 3.200 armas nucleares estratégicas soviéticas estavam instaladas nos territórios de Ucrânia, Bielorrússia e Cazaquistão. Estima-se que cerca de 1.250 delas eram armas intercontinentais ofensivas, cujo objetivo era manter o equilíbrio estratégico soviético em relação aos EUA.

O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, participa de uma coletiva de imprensa do presidente russo, Vladimir Putin, após uma reunião do Conselho de Estado sobre a implementação da política de juventude nas condições atuais, no Kremlin em Moscou, Rússia, 22 de dezembro de 2022
O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, participa de uma coletiva de imprensa do presidente russo, Vladimir Putin, após uma reunião do Conselho de Estado sobre a implementação da política de juventude nas condições atuais, no Kremlin em Moscou, Rússia, 22 de dezembro de 2022

Naquele contexto, o arsenal ucraniano seria o terceiro maior do mundo, superando os arsenais combinados de Grã-Bretanha, França e China. Pouco interessados em expandir o número de potências nucleares no mundo, EUA e seus parceiros ocidentais trabalharam ativamente para transferir o arsenal soviético para Moscou, explicou o mestre em estudos estratégicos e doutorando em relações internacionais, Tito Lívio Barcellos Pereira.

"Após o fim da Guerra Fria, os EUA emergem como um ator unipolar no sistema internacional e em uma posição vitoriosa geopoliticamente. Por isso, não tinha o interesse na emergência de novas potências nucleares", disse Pereira à Sputnik Brasil. "Nesse contexto, os EUA eram o ator mais interessado, eram o ator que mais incentivou e financiou esse processo."

Negociações envolvendo EUA, Rússia e Ucrânia culminaram na assinatura de acordo trilateral que transferiu os arsenais para Moscou e na entrada de Kiev no Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) como país não nuclear, em 1994.

Da esquerda para a direita: Presidente dos Estados Unidos Bill Clinton, Presidente da Rússia Boris Yeltsin e Presidente da Ucrânia Leonid Kravchuk durante a cerimônia de assinatura do Tratado sobre a Retirada de Armas Nucleares do Território Ucraniano, em Moscou, Rússia, 13 de janeiro de 1994
Da esquerda para a direita: Presidente dos Estados Unidos Bill Clinton, Presidente da Rússia Boris Yeltsin e Presidente da Ucrânia Leonid Kravchuk durante a cerimônia de assinatura do Tratado sobre a Retirada de Armas Nucleares do Território Ucraniano, em Moscou, Rússia, 13 de janeiro de 1994

"Passadas mais de três décadas, é um delírio falar em 'devolver' armas nucleares para a Ucrânia. A essa altura do campeonato, isso não seria uma devolução, mas sim a transferência de novas armas", disse o historiador Rodrigo Ianhez à Sputnik Brasil. "A transferência de um arsenal a um país não nuclear iria completamente contra o TNP, abrindo precedentes perigosos."

O historiador especializado em URSS ainda nota que, apesar de armas nucleares estratégicas soviéticas terem sido instaladas no território ucraniano, o governo local não mantinha autonomia quanto ao seu uso. Naquele contexto, Moscou mantinha os códigos para lançar as armas e o chamado "controle positivo" do arsenal ucraniano.

"Além disso, naquela época a Ucrânia era muito próxima da Rússia, e se manteria assim pelos próximos vinte anos. A Ucrânia não era reconhecida como um membro do campo ocidental e manter armas nucleares sob o controle de Kiev não traria naquele momento nenhum benefício para a Europa ou para os Estados Unidos. Pelo contrário", notou Ianhez.

As relações entre EUA e Rússia naquele contexto eram diferentes das atuais. Com um governo ávido para se aproximar do Ocidente, Moscou manteve laços estreitos com Washington durante todo o processo que garantiu a transferência dos arsenais soviéticos para a Rússia.

O então presidente da Rússia, Boris Yeltsin (centro) e seu homólogo ucraniano Leonid Kravchuk (terceiro à direita) caminham na praia em Dagomys, Rússia, junho de 1992 (foto de arquivo)
O então presidente da Rússia, Boris Yeltsin (centro) e seu homólogo ucraniano Leonid Kravchuk (terceiro à direita) caminham na praia em Dagomys, Rússia, junho de 1992 (foto de arquivo)

"As relações entre Washington e Moscou [durante o governo] de Boris Yeltsin eram bastante próximas, o que facilitou a transferências dos arsenais soviéticos para a Rússia, que foi apontada, com a anuência dos EUA, como a herdeira legal da URSS", resumiu Pereira.

A dura crise econômica que acometeu o Leste Europeu gerou preocupação nos EUA, dado o alto custo de manutenção de arsenais nucleares. O colapso econômico poderia gerar o contrabando dos próprios armamentos nucleares, ou da tecnologia dominada por cientistas soviéticos residentes na Ucrânia.

"Após a dissolução da superpotência socialista, os EUA se preocupavam que armamento nucleares estratégicos pudessem parar em outros países de terceiro mundo, que poderiam usá-los contra Washington e seus aliados", disse Pereira. "A nova preocupação dos EUA nos anos 90, terminada a Guerra Fria, era com o chamado contrabando nuclear."

Ambos os analistas notam que a indústria cinematográfica norte-americana engrossou o coro e produziu diversos filmes sobre o perigo representado pelos arsenais do espaço pós-soviético. Franquias como James Bond apostaram em tramas na qual armas do Leste Europeu caíam em mãos inimigas, ameaçando a segurança do Ocidente.

Urânio retirado de armas nucleares russas segue para os EUA para ser utilizado como fonte de energia elétrica, em parceria chamada Megatons para Megawatts, em 2013
Urânio retirado de armas nucleares russas segue para os EUA para ser utilizado como fonte de energia elétrica, em parceria chamada Megatons para Megawatts, em 2013

"Muitos filmes retratavam os países da antiga URSS em grave crise econômica, necessitando de fundos, e por isso vendendo os seus arsenais nucleares a grupos terroristas fictícios no Oriente Médio e na península coreana", relatou Pereira.

De fato, o colapso econômico levou a drástico aumento das atividades de grupos criminosos na Ucrânia, debilitada política e socialmente pelo choque imposto pela queda da URSS. Segundo Ianhez, "a Ucrânia foi tomada por máfias, transformando-se naquilo que se convencionou chamar de Estado falido".

"Apesar de a Ucrânia ter sido uma das regiões mais industrializadas da URSS, principalmente a região de Donbass, a indústria soviética tinha uma cadeia de suprimentos muito integrada e dependia de outras repúblicas da união para funcionar", explicou o historiador Ianhez. "Após a separação, muitos setores da economia ucraniana não sobreviveram, deixando o país em ruínas. Então manter os arsenais nucleares na Ucrânia realmente era arriscado."

O argumento econômico foi utilizado repetidamente pelos EUA durante suas negociações com a Ucrânia no período pós-soviético. Diplomatas dos EUA apontavam que Kiev não teria fundos suficientes para manter um arsenal tão numeroso, que geraria prejuízos para o orçamento e desenvolvimento econômico do país.

Os ex-presidentes ucranianos Leonid Kuchma e Leonid Kravchuk (da esquerda para a direita) durante reunião do parlamento ucraniano, Kiev, Ucrânia, 28 de janeiro de 2014 (foto de arquivo)
Os ex-presidentes ucranianos Leonid Kuchma e Leonid Kravchuk (da esquerda para a direita) durante reunião do parlamento ucraniano, Kiev, Ucrânia, 28 de janeiro de 2014 (foto de arquivo)

"Em troca, os EUA ofereceram compensações econômicas, perdão de dívidas e outras benesses", disse Ianhez. "Kiev percebeu que poderia extrair muitas conceções das potências nucleares como os EUA e não saiu do acordo de transferência de seus arsenais de mãos abanando."

As contrapartidas oferecidas à Ucrânia por EUA e Rússia também se estenderam ao setor nuclear civil, com garantias de fornecimento de combustível nuclear às usinas ucranianas e ao processamento de resíduos nucleares.

"Na época, políticos ucranianos perceberam que a manutenção do arsenal era caríssima. Os arsenais já não eram modernos, e a verdade é que eles teriam que pagar caro para manter um arsenal que dificilmente poderia ser utilizado sem o apoio técnico de Moscou", relatou Ianhez. "A situação se impôs, e os ucranianos tinham poucas alternativas a não ser transferir suas armas."

Renuclearização da Ucrânia?

Apesar dos arsenais terem sido transferidos e, em parte, desmantelados, os cientistas soviéticos residentes na Ucrânia mantiveram seu know-how nuclear. Com uma indústria de defesa também capacitada, muitos analistas se perguntam se a Ucrânia não seria capaz de desenvolver armamentos nucleares sem ajuda externa.

"O desenvolvimento de armamentos nucleares por parte da Ucrânia levaria tempo e exigiria recursos financeiros que ela não tem", declarou Pereira. "Mesmo que tivesse uma indústria de defesa, programa espacial e engenharia nuclear notáveis, com capacidades civis ainda intactas, a Ucrânia hoje em dia dificilmente conseguiria desenvolver armamentos, mesmo que se empenhasse."

Juridicamente, a Ucrânia precisaria se retirar do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e evitar as inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica, o que dificilmente seria bem visto por seus parceiros nucleares no Ocidente.

Rafael Grossi, diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), chega a reunião do Conselho de Governadores da AIEA em Viena, Áustria, 22 de novembro de 2023
Rafael Grossi, diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), chega a reunião do Conselho de Governadores da AIEA em Viena, Áustria, 22 de novembro de 2023

"Isso simplesmente enterraria todas as iniciativas multilaterais construídas no âmbito do controle de armamentos e não proliferação", disse Pereira. "É difícil imaginar como o TNP sobreviveria caso potências nucleares como os EUA, França e Reino Unido reconhecessem a saída da Ucrânia do acordo, a fim de se rearmar nuclearmente."

A reação russa a tal cenário tampouco poderia ser ignorada pela comunidade internacional, levando a uma escalada sem precedentes nas tensões internacionais. Para Ianhez, "líderes europeus e os vizinhos da Ucrânia não apoiariam a sua nuclearização, mesmo em meio à atual retórica belicista".

"Apesar de estar se portando de forma bastante irresponsável e provocado uma série de escaladas, o fato de a Casa Branca ter afastado esse cenário até agora demonstra o quão grave seria a transferência [de armas nucleares para a Ucrânia]. Realmente, só vozes muito belicistas podem dar eco a uma insanidade dessas", concluiu o historiador.