Imigração como ameaça: fechamento de fronteiras expõe crise na integração da UE, notam analistas
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, analistas apontam que países da União Europeia cada vez mais adotam controles fronteiriços e políticas anti-imigração que vão contra o estatuto do bloco, que prevê livre circulação de pessoas e mercadorias e proteção a refugiados.
Os Países Baixos anunciaram em novembro que vão fechar suas fronteiras terrestres à zona de livre circulação de cidadãos e mercadorias da União Europeia (UE) a partir do dia 9 deste mês.
A medida tem duração de um ano e faz parte do plano para conter a imigração, proposto pelo governo do país, controlado pelo Partido pela Liberdade, uma legenda anti-imigração.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam o impacto do fechamento de fronteiras sobre a UE e se a medida pode ser considerada um sinal de fracasso do bloco europeu.
Ricardo Caichiolo, professor de relações internacionais do Ibmec Brasília, afirma que a decisão do governo holandês foi na mesma linha da Alemanha, que adotou tal medida em setembro. A iniciativa também reflete a abordagem do partido de direita que ascendeu ao poder nos Países Baixos nas eleições de 2023.
Segundo ele, há na UE um debate intenso sobre a capacidade dos países do bloco de absorver o número de imigrantes que chega principalmente por meio da Itália.
"O que a gente tem de levar em consideração é que esses imigrantes muitas vezes estão fugindo de guerras, são pessoas com pouco poder aquisitivo e pouca formação acadêmica. E o ideal para os países da União Europeia, o que eles gostam de estimular, é uma imigração que traga pessoas que possam preencher áreas dentro do Estado que demandam uma mão de obra mais capacitada", afirma.
Ele observa que hoje na Europa, com raríssimas exceções, existe um movimento de pessoas apoiando partidos de direita radical, e lembra que isso refletiu nas eleições para o Parlamento Europeu, em junho, quando a maioria dos assentos foram obtidos por partidos dessa vertente política. Nesse contexto, avalia o especialista, o que é visto hoje é um reflexo do pensamento da sociedade não só nos Países Baixos, mas nos demais países europeus, com exceção dos países nórdicos, que seguiram outro caminho.
"É um reflexo do que o cidadão [europeu] hoje pensa. E o que a gente deve destacar é que [esse] é um cidadão jovem. O perfil do cidadão hoje que escolhe as decisões políticas do país dentro da União Europeia, de uma forma geral, é uma pessoa jovem com inclinação à direita."
Para Caichiolo, o cenário atual indica um retrocesso para o estatuto da UE, que determina o resguardo do bem-estar, da saúde e da vida de refugiados, e também um retrocesso no espaço Schengen, área criada por países europeus na qual não há controles fronteiriços e alfandegários. Segundo ele, isso tem como base a ideia de que os imigrantes são os causadores de todos os males que hoje afetam o continente.
"É uma demanda que vem da sociedade no sentido de identificar o imigrante como causador de todos os problemas, da violência interna e, obviamente, da falta de emprego. Mas há esse elemento xenófobo de você entender que o imigrante é o principal causador de todos os problemas do Estado", afirma.
Segundo Caichiolo, essa imagem em relação a imigrantes em parte foi construída em decorrência dos ataques com faca registrados em países europeus perpetrados por fundamentalistas, que acabam comprometendo a visão da população sobre imigrantes como um todo.
"Quando a gente teve alguns ataques com faca, no caso foi na Alemanha, mas isso repercute na Europa como um todo. E aí há a questão que envolve uma ameaça terrorista, inclusive os ataques com faca aconteceram um pouco antes das eleições regionais na Alemanha e que acabou resultando em vitória do partido da extrema-direita e anti-imigração da Alemanha."
Ele acrescenta que há uma ideia vigente de que esses ataques terroristas são perpetrados por imigrantes que entraram ilegalmente nos países europeus.
"Então, esse simbolismo do terrorista e essa falsa conexão com os imigrantes que chegam, ingressam na União Europeia, e especificamente no caso holandês, é o que faz com que a população acabe entendendo que eles são um problema generalizado."
Atentado do 11 de setembro impactou políticas migratórias
Por sua vez, Natali Hoff, professora de relações internacionais e ciência política do Centro Universitário Internacional (Uninter), afirma que a construção da ideia do imigrante como terrorista começou ainda antes da crise migratória na Europa. Segundo ela, essa imagem começou a ser talhada com os atentados do 11 de setembro nos EUA.
"Esse enquadramento da imigração como uma ameaça se ampliou primeiro com o 11 de setembro, onde a gente começa a ter uma associação de imigração com o terrorismo", afirma.
Ela explica que nos anos seguintes ao atentado essa associação vai balizar políticas migratórias na Europa e nos EUA, e a discussão em torno do tema se aprofunda em meados dos anos 2010, sobretudo entre 2015 e 2016, quando a Europa começa a receber um número muito alto de solicitações de refúgio.
"Isso vai gerar uma crise migratória que vai ampliar essa discussão sobre a política migratória no continente europeu e cada vez mais vai enquadrar a questão migratória dentro de uma perspectiva de segurança."
Ela acrescenta que a discussão tem servido para o avanço de legendas radicais no continente, que utilizam o medo e a associação da imigração como algo negativo para alimentar sua retórica.
Hoff avalia que a posição adotada pelo governo holandês evidencia o momento de crise no processo de integração europeu, em que cada vez mais países concluem que há problemas na livre circulação acordada no espaço Schengen, que é "visto como uma das maiores conquistas da União Europeia".
Segundo ela, a situação atual mostra que o espaço Schengen continua existindo, mas muito limitado por conta do uso quase que constante de algo que deveria ser excepcional, que são os controles fronteiriços, "que deveriam acontecer só em último caso".
"Eu acho que essa questão migratória, a posição holandesa, o aumento na utilização desse tipo de recurso de controle fronteiriço evidencia que o processo de integração europeia vem passando por um momento de crise e que as soluções que estão sendo encontradas não estão sendo suficientes para lidar com as demandas dos atores que fazem parte do processo de integração."