Fracasso da política de sanções: Ocidente interpretou mal a força da economia russa, notam analistas
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam por que a economia russa está prevista para crescer até 3,6% neste ano, enquanto países europeus estão estagnados ou à beira da recessão.
Em entrevista recente, o assessor especial da presidência para assuntos internacionais, Celso Amorim, destacou que a economia da Rússia segue em expansão, mesmo diante do boicote dos EUA e da União Europeia (UE) ao gás russo, seguindo um caminho contrário ao de países europeus, que cresceram pouco ou estão à beira da recessão.
A observação de Amorim vai ao encontro de dados divulgados na semana passada pelo Serviço Federal de Estatísticas do Estado (Rosstat), que apontaram que a produção de gás da Rússia aumentou 9,4% em relação ao 2023 e chegou a 470 bilhões de metros cúbicos entre janeiro e outubro.
"A Europa, coordenada com os EUA, boicota o gás russo. A economia dos países da Europa está caindo ou crescendo muito pouco e a Rússia está crescendo", disse Amorim.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam a resiliência da economia russa e explicam por que a política de sanções contra Moscou falhou.
Williams Gonçalves, professor titular de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), afirma que as sanções ocidentais falharam porque EUA e seus aliados europeus "acreditaram nas suas próprias ideias, segundo as quais a Rússia é um país isolado, mas não é". Ele frisa que a Rússia é parte de uma ampla e importante articulação internacional.
"O sistema internacional mudou bastante. Formou-se uma nova coligação mundial extremamente importante, reunindo grandes países da periferia mais a Rússia. O BRICS é o ponto nodal dessa nova maioria. Portanto, o que aconteceu é que a Rússia ficou parcialmente privada dos seus mercados ocidentais, mas essa privação foi amplamente compensada por mercados como o indiano, o chinês e o africano", afirma.
Ele acrescenta que o papel do Sul Global foi fundamental para que as sanções ocidentais não obtivessem êxito. Segundo o professor, o Sul Global se articula cada vez mais fortemente e a última cúpula do BRICS em Kazan foi uma evidente demonstração disso.
"Uma conferência das mais importantes, onde se discutiu questões fundamentais, pertinentes ao funcionamento da ordem internacional. Portanto, essa ideia de que o Ocidente deve governar o mundo, e quem não faz parte do Ocidente deve simplesmente se submeter, está cada vez mais caduca, cada vez mais ultrapassada. O que se vê é uma ampla articulação internacional, que tem o Oriente como pedra angular. O triângulo Índia, China e Rússia é hoje fundamental para o funcionamento do sistema internacional."
Nathana Garcez Portugal, doutoranda em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, afirma que a economia russa deve crescer entre 3% e 3,6% neste ano, segundo as projeções do banco central russo e do Fundo Monetário Internacional (FMI). O percentual é superior ao de outras economias, o que, segundo ela, mostra a resiliência da economia russa, embora para o próximo ano as projeções sejam menores muito por conta da inflação.
"Mas de um modo geral a expectativa para esse ano é que, sim, a economia russa se mantenha saudável. Isso se dá por conta de diversos fatores. O primeiro é o caráter estratégico de um dos maiores setores econômicos russos, que é o setor energético, que foi pouco afetado pelas sanções ocidentais e, portanto, conseguiu manter-se em atividade com relativas poucas restrições devido à sua importância no caráter do mercado global", afirma.
Portugal aponta outro motivo para a resiliência econômica russa: a diversificação de parcerias. Ela afirma que após receber as sanções Moscou passou a estabelecer conexões e dar prioridade a conexões econômicas com outras potências importantes no mercado global, incluindo Turquia, Índia, China e outros países do BRICS, "o que minimizou as suas perdas econômicas ao longo desse período de quase três anos de conflito".
"Algumas dessas parcerias estão dentro do setor de petróleo e gás natural, dentro do setor energético, no mercado energético global. A gente tem hoje alguns projetos e algumas parcerias que estão saindo do papel, inclusive para a criação e construção de gasodutos, oleodutos, como a Power of Siberia 1, que já está em funcionamento, temos o projeto da Power of Siberia 2, que deve entrar em funcionamento, ela sofreu algumas questões políticas neste ano, mas deve entrar em funcionamento, deve ter seu projeto finalizado [...]. Então a gente tem uma série de projetos dentro do setor energético que tem possibilitado esse escoamento da produção russa e é o que tem dado uma resiliência mesmo para a economia [russa]."
Pérsio Glória de Paula, especialista do Núcleo de Avaliação da Conjuntura (NAC), da Escola de Guerra Naval (EGN), destaca que a Rússia construiu "uma fortaleza econômica", que tornou possível a Moscou resistir às sanções e ao congelamento de ativos por países ocidentais. Ele afirma que esse processo começou há dez anos, durante o imbróglio envolvendo a Crimeia, quando foram impostos os primeiros pacotes de sanções à Rússia.
"Antes disso, também já havia um movimento nessa direção de construção de uma autonomia econômica russa, tanto do domínio da extração das matérias-primas, como também o domínio de tecnologias, de desenvolvimento de novos tipos de materiais para garantir, de certa forma, uma autonomia geral."
Ele ressalta que esse processo tem influência das experiências históricas da União Soviética (URSS), que também enfrentou um cenário internacional diverso. Ademais, ele cita a diversificação e parcerias com países fora do eixo ocidental.
"Isso permitiu a Rússia ter um portfólio de parcerias comerciais, mas não só comerciais, também políticas, bastante diversificado. Então isso também aumentou bastante a projeção internacional russa, ao passo que colocou a Rússia em uma posição central nas relações econômicas internacionais", afirma.
De Paula afirma que também houve "uma clara má interpretação das capacidades econômicas russas por parte dos atores ocidentais".
"A gente viu no começo do conflito alguns prognósticos falando do colapso econômico iminente da Rússia, de que o país estaria sem chances de resistir às sanções ocidentais, que a Rússia é uma grande estação de gás. Houve diversos comentários nesse sentido, mas que não levaram em consideração que a Rússia, além do gás, também produz trigo, produz fertilizantes, maquinário, além das outras indústrias, como a indústria bélica, e até mesmo indústrias estratégicas, como a espacial e a nuclear, em que a Rússia possui diversos acordos mundo afora."
Ele aponta ainda que muitos dos parceiros econômicos da Rússia são países do Sul Global que "não estão nem um pouco interessados em romper as relações com a Rússia ou aderir a esse regime de sanções".
Crise na Europa é fruto da decisão política de apoiar EUA nas sanções
Gonçalves enfatiza que o declínio das economias europeias, sobretudo a da Alemanha, é resultado da decisão política tomada por países europeus de se submeterem à "orientação" e "obstinação" que os EUA têm de se manter como potência hegemônica, de governar o mundo, impondo seus valores e instituições para isso. Ele afirma que, no caso da Alemanha, a economia ia muito bem quando articulada com a economia russa. A Alemanha comprava gás russo relativamente barato e tinha na Rússia "um mercado importante para suas exportações".
Esse cenário mudou com a adesão da Alemanha ao que ele classifica como "loucura da Ucrânia", que foi a provocação que fizeram com a Rússia ao tentar integrar a Ucrânia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
"Os próprios americanos explodiram os dutos de gás [Nord Stream], hoje isso não é mais segredo, todos sabem, os americanos admitem, os alemães não cobram isso. E os alemães e os demais europeus são obrigados hoje a comprar gás liquefeito transportado de navios norte-americanos para a Europa a um preço muitíssimo elevado, muito mais elevado do que aquele que compravam da Rússia", afirma Gonçalves.
Como resultado disso, acrescenta o especialista, o preço da energia subiu e a indústria alemã sofreu um baque muito grande, os custos de produção se elevaram demasiadamente, de modo que muitas empresas fecharam as portas e outras se transferiram para os EUA.
"Na Alemanha, há uma escandalosa desindustrialização que levou o país a uma crise econômica e, certamente, [o país] caminha para uma séria crise política. E isso é determinado não por uma lógica, por uma racionalidade econômica, mas pela lógica política de seguir acriticamente a posição dos EUA, mesmo violando os seus próprios interesses nacionais."
Portugal aponta que economias como do Reino Unido e da Alemanha devem ter um crescimento perto de zero neste ano, porque prescindiram de uma relação econômica até então relativamente estável e extremamente interessante, que era a parceria econômica no mercado energético com a Rússia, relativa ao gás natural e petróleo.
"E isso foi uma decisão geopolítica, não foi uma decisão pautada em benesses econômicas. Foi uma escolha de se distanciar da Rússia e apoiar o esforço de guerra ucraniano."
Ela afirma ainda que essas mesmas economias em crise paralelamente enfrentam o aumento da competição com a China, que vem ampliando a presença na Europa.
"A China vem ocupando mercados bastante relevantes na Europa, com destaque para o setor automobilístico, mas não apenas esse. Setores tecnológicos também estão sendo afetados por uma grande competitividade chinesa. Esses países estão vivendo um momento onde eles estão pagando mais pela sua energia, pagando além do que seria economicamente interessante para financiar um outro conflito [...]. E em outro aspecto econômico eles ainda estão lidando com uma grande competitividade chinesa dentro dos seus próprios mercados. Isso é possível perceber na queda dos lucros da Volkswagen na Alemanha, que tem gerado uma série de demissões e uma greve dos trabalhadores."
Por Sputinik Brasil