Milei busca um acordo de livre comércio com os EUA: medida aumenta tensões com Brasil e Mercosul?
A intenção do presidente da Argentina, Javier Milei, de buscar um acordo de livre comércio com os Estados Unidos poderia prejudicar o Mercosul, que não permite negociações sem o acordo de todo o bloco.
A vitória eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos motivou o presidente argentino Javier Milei a manifestar publicamente a sua intenção de procurar um Tratado de Livre Comércio (TLC) com Washington, aproveitando a eventual harmonia entre ambos os governos.
Durante entrevista à rádio argentina Rivadavia, Milei garantiu que a vitória de Trump permitiria "progredir em maiores acordos comerciais com os Estados Unidos, da mesma forma que estamos avançando com a China".
Questionado especificamente se isso significava que ele buscaria um TLC, o presidente foi categórico: "Exatamente, sim, está certo, você me leu perfeitamente."
Embora Milei e Trump já tenham compartilhado evento em Mar-a-Lago, a possibilidade de um acordo comercial quando o norte-americano voltar à Casa Branca só foi mencionada, por enquanto, pelo argentino, que também confia que Trump facilitará as negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Um balão de ensaio
Em diálogo com a Sputnik, Emanuel Porcelli, cientista político argentino e especialista em Relações Internacionais, argumentou que a declaração de Milei é mais um "balão de ensaio" do que uma possibilidade concreta, dado que "não houve nenhuma ação anterior" que presuma algum tipo de progresso rumo a um acordo comercial.
O analista destacou que se trata de um campo diferente do acordo Mercosul-União Europeia (UE), em que, apesar da falta de especificidade, há "uma longa jornada que facilitaria o processo".
Nesse sentido, destacou que a Argentina e os Estados Unidos não têm histórico de negociações para um acordo comercial desde a IV Cúpula das Américas, em 2005, em Mar del Plata, quando os Estados Unidos tentaram promover, sem sucesso, a criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).
"A ideia de um TLC é mais uma expressão do desejo de construir aquela narrativa do vínculo especial que existe entre a Argentina e os EUA do que uma realidade que seja realmente propícia", afirmou Porcelli.
O especialista sublinhou ainda que a "retórica protecionista da primeira administração Trump" torna difícil pensar que o magnata norte-americano optará pelo livre comércio com a Argentina. A título de exemplo, o analista lembrou que durante o seu primeiro mandato (2017-2021), o norte-americano aumentou as tarifas sobre as exportações argentinas de biodiesel para os Estados Unidos.
Neste quadro, Porcelli arriscou que, apesar do otimismo de Milei, a relação de Trump com a América Latina "não parece que seria transmitida através de um discurso de livre comércio". Pelo contrário, levantou a hipótese de que o próximo presidente dos EUA concentrará os seus laços com a Argentina e a região em uma "política de segurança", focada em contrariar a influência chinesa.
Estagnação do Mercosul?
Mas, mesmo com poucas chances de se concretizar, a intenção de Milei de avançar com um TLC com os EUA poderia ser uma mensagem forte para o Mercosul internamente, cuja próxima cúpula de presidentes está marcada para 5 e 6 de dezembro em Montevidéu, no Uruguai.
O fato é que a possibilidade de os parceiros do bloco — que atualmente são Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Bolívia — negociarem acordos comerciais com terceiros países sem o consentimento dos demais membros tem sido um ponto de controvérsia dentro do bloco nos últimos anos.
Precisamente, o presidente argentino anterior, Alberto Fernández (2019-2023), foi especialmente enfático ao rejeitar a intenção do Uruguai de promover um possível acordo de livre comércio com a China, sem a autorização dos outros parceiros.
Para Porcelli, espera-se que a vitória de Trump nos EUA e a recente nomeação do ex-embaixador argentino em Washington, Gerardo Werthein, como chanceler permitam a Milei manter "uma posição muito mais radicalizada e de confronto" dentro do Mercosul, sempre a favor de fortalecer as relações com os Estados Unidos.
Além disso, sublinhou o especialista, a cúpula do Mercosul em dezembro será realizada um dia após a Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) que terá lugar no dia 4 de dezembro em Buenos Aires e poderá contar com a presença do próprio Trump e do seu secretário de Estado designado, Marco Rubio.
"Milei irá à cúpula do Mercosul com o poder da cúpula da CPAC, então certamente criará um cenário de confronto, especialmente com o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva", disse Porcelli.
Embora o Brasil tenha iniciado negociações com os EUA para um possível TLC em 2019, quando o presidente brasileiro era Jair Bolsonaro (2019-2023), essa possibilidade foi congelada com o retorno ao governo Lula, que já havia rejeitado um eventual acordo com essas características em seu primeiro mandato e parece focado em suas relações com os demais membros do BRICS.
O risco de negociar bilateralmente
Assim, as intenções de Milei de estreitar os laços com os EUA poderão encontrar resistência do Brasil em um Mercosul que, segundo Porcelli, "já está estagnado em termos de iniciativas e discussões". Uma nova divergência entre Buenos Aires e Brasília devido à relação com Washington poderia "aprofundar ou continuar esta estagnação", previu o cientista político.
De qualquer forma, o especialista considerou que o nível de confronto sobre a exigida "flexibilidade" do bloco regional dependerá também "da capacidade do Brasil de conter e impor os ritmos da agenda" e de como vão jogar "os atores econômicos que têm sido os beneficiários do Mercosul", geralmente os setores industriais argentino e brasileiro, geralmente contrários à assinatura de acordos de livre comércio.
Estes setores poderiam, segundo o analista, funcionar como um "elemento disciplinador" para evitar "apostar em negociações unilaterais e quebrar a lógica 4+1" usada pelo bloco para negociar com parceiros externos.
Para Porcelli, o Mercosul pode encontrar na Comunidade Andina (CAN) – bloco econômico formado pela Bolívia, Colômbia, Equador e Peru – um exemplo dos resultados negativos de permitir negociações bilaterais sem o apoio de todo o bloco.
"Uma vez possibilitada a possibilidade de negociação bilateral, a CAN desapareceu como espaço de gestão de acordos comerciais e de cogestão nas negociações internacionais", alertou.
Por Sputinik Brasil