Por que a Albânia quer criar um microestado muçulmano na capital do país?
Anunciado em setembro, o microestado ficará na capital Tirana e terá um quarto do tamanho do Vaticano. Para especialista, projeto é parte da tendência de governos de mobilizar identidades, sejam elas religiosas ou étnicas.
A Albânia planeja ceder parte de seu território para criar um microestado, com apenas dez hectares — cerca de um terço do tamanho do Vaticano — para muçulmanos da ordem Bektashi, ramificação mística do Islã que tem a tolerância como maior princípio.
A medida foi anunciada pelo primeiro-ministro albanês, Edi Rama, durante a última conferência das Nações Unidas (ONU), realizada em setembro, em Nova York.
O microestado será criado na capital do país, Tirana, terá suas próprias regras, passaportes e fronteiras, e não proibirá o consumo de álcool nem determinará regras de vestimenta ou comportamento.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, Victória Perino, mestre em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas e bacharel em relações internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), afirma que ceder territórios a uma minoria religiosa não é uma prática comum no mundo contemporâneo, mas mobilizar identidades, sejam elas religiosas, étnicas, inclusive identidades nacionais, é uma prática bastante recorrente na política internacional.
"É um instrumento a que muitos líderes recorrem com muita frequência e, na história dos Balcãs, isso é particularmente verdade", explica.
Perino acrescenta que para entender o que está ocorrendo agora na Albânia é preciso compreender a história da formação do país. Ela explica que até o século XIX a Albânia fazia parte do Império Turco-Otomano, que começava a se desintegrar em um momento em que grandes potências europeias passaram a interferir naquele território. Esse processo de desintegração levou a disputas territoriais e à formação de novos Estados, como Sérvia, Croácia e a própria Albânia.
As fronteiras desses novos Estados, afirma a especialista, tiveram grande interferência das potências europeias, sobretudo do Império Britânico e do Império Austro-Húgaro, "muito interessados em conter o avanço da Rússia naquela região". Com isso, populações de diferentes etnias e religiões que conviviam de forma relativamente pacífica durante o Império Turco-Otomano, entre eles os Bektashi, começaram a entrar em rota de colisão por terem ideias e interesses diferentes em relação a projetos de Estados.
"Os Bektashi, no começo do século XX, foram importantes lideranças em avançar esse projeto nacionalista albanês. […] E ao longo do século XX os Bektashi vão ter um papel contínuo e importante, mas vão passar por muitos momentos de perseguição política, porque ao longo do século XX os Balcãs, como um todo, e a Albânia também, serão alvo de reiteradas ingerências", afirma.
Perino enfatiza que durante todos os momentos de turbulência e ocupação que a região dos Balcãs atravessou, os Bektashi foram perseguidos por seu papel político e pela defesa do ideal de nacionalismo albanês.
"Eles foram perseguidos durante o regime nazifascista, foram perseguidos durante a Primeira Guerra Mundial e, desde então, vêm tentando se reconstruir. Muitos deles migraram para fora da Albânia, […] mas alguns ficaram. Hoje eles representam aproximadamente 10% da população [do país] e têm tentado, desde 1992 pelo menos, […] se reconstituir enquanto uma ordem religiosa importante, mas não só, talvez muito mais do que isso, recuperar o papel político que eles desempenharam no contexto político albanês."
A especialista frisa que ao dar a declaração sobre a criação de um Estado Bektashi durante a Assembleia Geral da ONU, em um momento em que a Albânia avalia as reformas necessárias para integrar a União Europeia (UE), Rama "consegue ter a capacidade de se colocar como esse mediador entre o nacionalismo e o cosmopolitismo". No entanto, ele não especificou como será feita a criação desse novo território.
"Edi Rama não deixou muito claro qual vai ser o modus operandi, como é que colocaria em prática [o projeto]. O que está parecendo, na verdade, e é isso que os analistas da Albânia e a população têm dito, que ele tirou um pouco o plano da cachola. Foi uma coisa que todo mundo foi pego de surpresa. Ele ainda parece não ter conversado com grupos internos antes de ter levado esse anúncio dele na Assembleia Geral da ONU."
Perino acrescenta que a declaração foi bem recebida pelos Bektashi, mas foi impopular entre a população albanesa, uma vez que não houve consulta pública nem sinalização sobre os planos.
Porém, ela acrescenta que, de forma geral, a declaração teve pouco impacto e que Rama tem costume de dar declarações um pouco disruptivas na mídia, que soam estranhas e depois precisam ser corrigidas.
"Para ser sincera, o impacto foi tão pequeno que as próprias lideranças da União Europeia, que estão em diálogo com o governo da Albânia para tentar fazer as reformas e fazer com que a Albânia de fato ingresse no bloco europeu, nem levaram em consideração essa declaração. Então acho que até eles, na verdade, estão dizendo: 'Bom, a gente sabe que isso não vai acontecer, então não é algo que vai interferir.' Parece que é algo que veio de Edi Rama de tentar se posicionar e acenar para dois grupos distintos", afirma a especialista.