ENTREVISTA

Nova Rota da Seda: Brasil poderia barganhar apoio a iniciativas de reindustrialização, diz analista

O ingresso do Brasil na Iniciativa Cinturão e Rota é cobiçado pela China por ser o país um líder regional com voz ativa em grandes debates internacionais.

Publicado em 06/11/2024 às 13:02

A China é o principal parceiro comercial do Brasil em nível global desde 2009, quando desbancou os EUA da posição. Em 2023, as exportações brasileiras para o país asiático alcançaram um recorde de US$ 104,3 bilhões (R$ 625,8 bilhões), com um superávit de US$ 51,1 bilhões (R$ 306,6 bilhões), o maior da história do país, segundo dados da Comex do Brasil.

Com a iminente adesão à Nova Rota da Seda, estima-se que essa parceria se fortaleça ainda mais, e a expectativa é que o tema seja discutido em reuniões após a Cúpula do G20 no Rio de Janeiro, quando o presidente chinês, Xi Jinping, deve ser recepcionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Brasília.

Em entrevista à Sputnik Brasil, Renato Ungaretti, doutorando em estudos estratégicos e especialista Residente sênior na Observa China, afirma que o ingresso do Brasil na iniciativa chinesa "sempre foi uma prioridade para a China", já que o país é a maior economia da América do Sul, um líder regional e um grande mercado da região.

Ademais, ele aponta que o Brasil "é um dos últimos países sul-americanos que não entrou na Nova Rota da Seda ainda", ao lado da Colômbia e do Paraguai, que não tem relações diplomáticas com a China e reconhece Taiwan como Estado.

"Por essas razões, a China também prioriza muito a entrada do Brasil, que também é um parceiro no BRICS, que também é uma potência emergente. Então, por uma série de fatores, não somente econômicos, comerciais, mas também simbólicos, a entrada do Brasil é vista pela China como de grande relevância."

Marcos Cordeiro Pires, professor de economia política internacional da Universidade Estadual Paulista (UNESP), no Campus de Marília, enfatiza à Sputnik Brasil que o projeto da Nova Rota da Seda se insere em uma estratégia internacional da China, "que inclui as Iniciativas de Desenvolvimento Global, Segurança Global e Civilização Global". Nesse contexto, ele aponta que a Nova Rota da Seda é mais do que "uma iniciativa econômica e um meio de potencializar o desenvolvimento dos países do Sul Global", e há fortes motivos para Pequim ambicionar a adesão do Brasil.

"O Brasil não apenas é um importante ator no mundo em desenvolvimento, mas também nos grandes debates internacionais como paz, meio ambiente, transição energética e industrialização sustentável. O Brasil possui um mercado de 215 milhões de habitantes, grande extensão territorial, uma grande oferta de minerais críticos, água, irradiação solar etc. Por conta disso, a adesão do Brasil à BRI [Belt and Road Initiative, Iniciativa Cinturão e Rota] seria um fator importante para reforçar o papel dos países do Sul Global."

Adesão à inciativa pode levar à retaliação do Ocidente?

A iminente adesão, no entanto, deixa os EUA em alerta. Um dos indícios desse incômodo foi a recente declaração da chefe de Comércio dos EUA, Katherine Tai, em um evento da Bloomberg organizado em São Paulo, sugerindo que o Brasil deveria ter cautela em aderir à iniciativa.

Sobre essa desconfiança de Washington, Pires afirma que o "único consenso que existe nos EUA atualmente é a contenção da China, principalmente na América Latina, região onde Washington exerce a hegemonia há mais de 100 anos".

"Por conta disso, as agências governamentais [dos EUA] e o Comando Sul agem para mitigar o impacto da presença chinesa e reforçar os fundamentos da Doutrina Monroe."

Já Ungaretti destaca que o incômodo faz parte do acirramento das disputas comerciais, tecnológicas e sistêmicas entre China e EUA, processo que vem se desenrolando ao menos desde o primeiro governo de Donald Trump (2017-2021), se aprofundou durante a pandemia e permaneceu durante o governo de Joe Biden.

Ele afirma que os EUA vêm buscando estabelecer iniciativas para se contrapor à Nova Rota da Seda e que, por ter uma projeção estratégica na América Latina, têm "receio de que a região passe a ser cada vez mais incorporada à órbita de influência da China".

"Um processo [de incorporação] que vem, na verdade, se dando principalmente na esfera comercial, financeira, de investimentos, mas que também está se disseminando para componentes políticos mais importantes", afirma.

Atualmente, o Brasil se equilibra entre o Sul Global e o Ocidente, não desprezando parcerias estratégicas com ambos os lados. Questionado se uma eventual adesão à Nova Rota da Seda, em meio às desconfianças dos EUA, poderia desequilibrar essa balança, Ungaretti afirma que a medida se daria sob um "não alinhamento ativo", mas pontua que, embora não tenha potencial para desequilibrar as relações do país com ambos os lados, a forma como a adesão seria recepcionada, sobretudo pelos EUA, "poderia prejudicar, talvez, o papel de mediador que o Brasil tenta se colocar em algumas ocasiões, em alguns eventos internacionais importantes".

"Então, talvez o problema ou o receio da tomada de decisão brasileira seja justamente como esse possível gesto de entrada à Nova Rota da Seda poderia repercutir em outros países. Mas acho que é perfeitamente alinhável uma entrada do Brasil à Nova Rota da Seda com uma estratégia de inserção internacional autônoma e de não alinhamento ativo à medida que o Brasil também poderia ingressar em iniciativas lideradas pelos EUA ou por outros países ocidentais."

Pires, por sua vez, desconsidera que possa haver desequilíbrio nas relações do Brasil com o Sul Global e o Ocidente e ressalta que "há mais de uma centena de países que aderiram à BRI, inclusive da Europa".

"Como disse o economista Paulo Nogueira Batista Jr., o Brasil é muito grande para ficar no quintal de qualquer país. Mas isso não implica que os EUA não irão reclamar. Penso que a adesão ao BRI seja mais problemática dentro da estrutura do Estado brasileiro, já que muitos funcionários públicos temem desagradar a elite de Washington", afirma.

Que setores seriam mais beneficiados com a adesão à iniciativa?

Pires afirma que se fôssemos eleger uma área prioritária para os investimentos derivados da adesão à Nova Rota da Seda, seriam os "relacionados ao Novo PAC".

"O Brasil tem uma demanda muito grande por investimentos em infraestrutura de transportes, energia limpa, cidades inteligentes, saúde pública etc", afirma o professor.

Ungaretti também destaca o investimento em infraestrutura, que ele aponta ser uma lacuna histórica tradicional, que "limita e freia o desenvolvimento brasileiro sob diversas perspectivas".

"Investimentos em infraestrutura de transportes, rodovias, ferrovias, portos. A China também poderia contribuir bastante com a questão da transição energética, investimentos em usinas solares, usinas eólicas, sistemas de transmissão modernos, que confiram sistemas de energia com maior confiabilidade e resiliência, que permitam uma maior incorporação de fontes intermitentes, como a eólica e solar."

Ele acrescenta ainda que o Brasil poderia barganhar "programas de cooperação técnica de transferência de tecnologia, em tecnologias de baixo carbono, que a China atualmente é líder global em vários segmentos".

"O Brasil poderia barganhar também suporte, apoio financeiro, técnico, para as iniciativas de reindustrialização da economia brasileira. O segmento de veículos elétricos é um segmento importante, que tem contado com investimentos chineses, por exemplo. O Brasil poderia também barganhar programas de investimento em novas tecnologias ligadas ao desenvolvimento sustentável, como hidrogênio verde, como captura e armazenamento de carbono", conclui o especialista.