Voto de Gilmar Mendes garante indenização e impede que ocupante de boa-fé saia “com uma mão na frente e outra atrás”
Proposta transformou perda da terra em modelo semelhante à desapropriação indireta, com pagamento pela terra nua, benfeitorias e direito de permanência até a quitação
No julgamento sobre o marco temporal das terras indígenas, realizado no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Gilmar Mendes apresentou voto que alterou de forma profunda a situação jurídica dos ocupantes não indígenas de boa-fé, especialmente no que diz respeito ao direito à indenização e à forma de pagamento.
Na prática, a proposta do ministro afastou o risco histórico de desapossamento sem compensação adequada e instituiu um modelo próximo ao da desapropriação indireta: o particular perdeu a propriedade para a União — destinada ao usufruto indígena —, mas somente deixou a terra mediante pagamento integral, justo e previamente definido.
Indenização pela terra nua: quando passou a ser devida
Embora tenha rejeitado o marco temporal como obstáculo ao reconhecimento do direito originário indígena, Gilmar Mendes utilizou a data de 5 de outubro de 1988, promulgação da Constituição, como critério objetivo para definir o direito à indenização pela terra nua — ou seja, pelo valor da terra em si, e não apenas pelas benfeitorias.
Pelo voto proferido, o ocupante não indígena passou a ter direito à indenização integral da terra quando comprovou:
• que detinha justo título ou posse de boa-fé;
• que não havia ocupação tradicional indígena ou renitente esbulho na área em 5 de outubro de 1988.
Essa lógica inverteu a prática anterior, na qual o particular, mesmo de boa-fé, frequentemente recebia apenas pelas construções, cercas ou plantações, perdendo o valor da terra.
Como ficou definido o pagamento
O voto de Gilmar Mendes detalhou as formas possíveis de pagamento, ampliando as alternativas do Estado e garantindo maior segurança jurídica ao particular. A indenização passou a poder ser feita por meio de:
• pagamento em dinheiro, de forma direta;
• precatórios, respeitado o regime constitucional;
• Títulos da Dívida Agrária (TDA);
• reassentamento em outra área equivalente, como forma de compensação patrimonial.
A escolha do meio deveria observar avaliação técnica e critérios legais, mas o ponto central foi que a indenização deixou de ser simbólica e passou a refletir o valor de mercado da terra nua, somado às benfeitorias.
Benfeitorias: ampliação do conceito de boa-fé
Outro ponto relevante do voto foi a ampliação do prazo de reconhecimento da boa-fé para fins de indenização das benfeitorias.
Pela proposta apresentada:
• foram consideradas indenizáveis todas as benfeitorias realizadas até a Portaria Declaratória do Ministro da Justiça, que define os limites da terra indígena;
• o entendimento superou a tese anterior, que limitava a boa-fé ao início dos estudos técnicos ou à contestação administrativa.
Além disso, o voto exigiu que o pagamento fosse prévio e justo, com base em avaliação realizada pelo órgão competente, antes da retirada do ocupante.
Direito de permanecer na terra até o pagamento
Para evitar a retirada forçada sem compensação, Gilmar Mendes propôs e consolidou a chamada “bifurcação da posse”.
Nesse modelo:
• o ocupante não indígena manteve a posse direta e o uso do imóvel até o pagamento da parte incontroversa da indenização;
• enquanto não houve pagamento ou reassentamento, não pôde haver limitação de uso e gozo da terra.
Ou seja, o particular não foi obrigado a sair “com uma mão na frente e outra atrás”, aguardando indefinidamente a indenização.
Participação no processo e direito de defesa
O voto também reforçou garantias processuais aos não indígenas, assegurando:
• participação desde o início do processo demarcatório;
• acesso a documentos, estudos e provas;
• publicidade dos procedimentos da Funai, permitindo que proprietários soubessem antecipadamente se suas terras estavam sob análise.
Parcerias econômicas e redução de conflitos
Outro ponto relevante foi a autorização para parcerias agrícolas e econômicas entre indígenas e não indígenas, desde que:
• aprovadas pela comunidade indígena;
• gerassem benefícios coletivos;
• não implicassem perda da posse direta indígena, sendo vedado o arrendamento disfarçado.
Além disso, o voto endureceu contra invasões e “retomadas” ocorridas após o início do julgamento, prevendo sanções administrativas e vedando remoções forçadas sem processo concluído e indenização paga.
Mudança estrutural no conflito fundiário
Em síntese, o voto de Gilmar Mendes redefiniu o equilíbrio do conflito fundiário no Brasil. O proprietário de boa-fé deixou de ser tratado como mero ocupante tolerado e passou a ter direitos patrimoniais equivalentes aos de uma desapropriação, com:
• pagamento pela terra nua;
• indenização pelas benfeitorias;
• direito de permanência até a quitação;
• ou reassentamento em área equivalente.
A proposta buscou pacificar conflitos históricos, garantir justiça indenizatória e reduzir a insegurança jurídica que marcou, por décadas, os processos de demarcação no país.