'O pior dos mundos': China reage à aproximação de Javier Milei com os Estados Unidos

A Embaixada da China em Buenos Aires criticou o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Scott Bessent, após as declarações durante encontro com o presidente argentino Javier Milei em que criticou o vínculo financeiro entre Buenos Aires e Pequim. O gesto é considerado pouco habitual na diplomacia chinesa.
As autoridades chinesas expressaram "profundo descontentamento e categórico repúdio às maliciosas difamações e calúnias do secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Scott Bessent, durante sua visita à Argentina em 14 de abril", segundo informou o documento publicado.
Durante sua passagem por Buenos Aires, Bessent havia classificado como "nocivo" o acordo de swap — mecanismo de troca de moedas — entre Argentina e China, vigente desde 2009 e renovado na semana passada por mais um ano.
Por meio desse mecanismo, a Argentina acessa o equivalente a cerca de US$ 5 bilhões (R$ 29,4 bilhões) para reforçar suas reservas internacionais. A declaração segue a mesma linha do que havia dito Mauricio Claver-Carone, enviado especial de Trump para a América Latina, semanas atrás.
A embaixada chinesa afirmou que Washington "deveria abster-se de obstruir ou sabotar deliberadamente a assistência prestada por outros países às nações em desenvolvimento e ao Sul Global. Também não deveria sacrificar o bem-estar dos povos dessas nações em nome de seus egoístas interesses geopolíticos e da defesa de sua própria hegemonia".
O embate diplomático eleva a tensão em um momento sensível para a economia argentina. O governo de Milei celebrou a renovação do swap como um alívio em meio às negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que dias depois resultaram em um acordo de US$ 20 bilhões (R$ 117,7 biilhões) com o órgão.
Apesar de Milei ter se alinhado aos EUA desde o início de seu governo, a China continua sendo um dos principais parceiros comerciais da Argentina e um ator central no apoio às suas reservas internacionais.
Paralelamente, o conflito se insere em uma escalada de tensões entre China e Estados Unidos. Nesta semana, Pequim suspendeu a compra de aviões da Boeing como parte da guerra comercial com Washington, em mais um gesto que reforça a disputa diplomática entre os dois gigantes.
Argentina entre as tensões EUA-China
"Há uma escalada da China na tensão com os Estados Unidos, e agora a Argentina está no meio", afirmou Sabino Vaca Narvaja, ex-embaixador argentino em Pequim (2019–2023), em entrevista à Sputnik.
Na sua avaliação, a estratégia diplomática de Milei expõe o país a possíveis retaliações de um de seus principais parceiros comerciais. "Esse é o pior dos mundos: Milei se subordinou aos EUA e agora volta a ficar em uma posição desconfortável", explicou.
O diplomata ressaltou que o swap com a China, renovado recentemente por mais um ano, foi fundamental para viabilizar o novo empréstimo com o FMI.
"A China destaca que, se não tivesse renovado o acordo, talvez Milei ficasse sem o acordo com o Fundo", explicou Vaca Narvaja. O especialista também alertou que "suspender o swap é impraticável: não há reservas suficientes para devolver esses recursos".
Já o analista internacional Juan Venturino concordou que o custo do alinhamento irrestrito de Buenos Aires com Washington já começa a aparecer. "Milei assumiu acreditando que o alinhamento total não teria consequências, mas os primeiros efeitos desse posicionamento começam a surgiu", acrescentou à Sputnik.
Nesse contexto, o analista criticou a decisão do governo argentino de rejeitar o ingresso nos BRICS logo após assumir, em 2023. "Para a Argentina, não terá sido gratuito recusar o ingresso no grupo. Aos poucos, essa tensão começa a se manifestar", destacou o especialista.
Guerra comercial e sinais globais
O comunicado divulgado pela Embaixada da China se insere em um cenário de tensão geopolítica crescente entre Washington e Pequim, que já avançou do campo tecnológico para o monetário. Nesse contexto, a visita do secretário do Tesouro dos EUA à Argentina não apenas provocou uma resposta imediata, como também reacendeu uma disputa de escala global.
"A guerra comercial visa conter o grande avanço da China também no plano monetário", explicou Vaca Narvaja. Para o ex-embaixador, o conflito atual vai além da questão de tarifas bilaterais: "Trump está consciente do declínio até militar dos Estados Unidos e não quer perder a hegemonia do dólar como moeda de troca comercial".
Sob essa ótica, o embate com Bessent é apenas mais uma expressão de um jogo de poder mais amplo. "Esse comunicado não é incomum", relativizou o diplomata, que também comparou os termos do swap com as imposições de outros organismos internacionais.
"Ao contrário do FMI, a China não impõe condicionalidades. Nesse sentido, os termos são mais acessíveis do que os oferecidos por outros organismos. Esse vínculo é muito fácil de romper e muito difícil de recuperar", concluiu.