Guerra de tarifas: EUA 'já perderam prazo de validade' para tentar frear a China, diz especialista

Na mais nova medida retaliatória contra a China, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou na última quarta-feira (2) que todos os produtos chineses serão tarifados em 54% — são 34% de taxa recíproca acrescida aos 20% que já existiam desde o início do ano. Apesar disso, especialistas acreditam que é "impossível" tentar frear Pequim.
Celulares da marca mais popular dos Estados Unidos, o iPhone, ao custo de até US$ 2.300 (R$ 12,9 mil) e aumento médio de cerca de US$ 5 mil (R$ 28,1 mil) repassado pelas montadoras ao mercado norte-americano. Diante da forte dependência da indústria dos Estados Unidos com a importação de peças e diversos outros produtos importados da China, a reação à tarifa de 54% sobre a importação de origem chinesa já provocou temor sobre o risco inflacionário no país. Enquanto isso, o governo Trump aposta no fortalecimento da produção interna como reflexo de novas taxas, na tentativa de reverter a desindustrialização no território.
Tudo isso ocorre em meio à meta de crescimento da China de 5% para 2025, mesmo com a guerra comercial em curso. A estratégia do país para atingir o número é justamente incentivar ainda mais o já enorme mercado interno, que seria o principal motor de crescimento neste ano. O professor de relações internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Marcos Cordeiro Pires avaliou ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, que na conjuntura atual é praticamente impossível frear a expansão econômica chinesa.
"Os norte-americanos têm imposto sanções contra a China de maneira sistemática desde 2017. Um exemplo é o acesso a chips de alto rendimento, que os EUA bloqueiam, inclusive, a venda de máquinas litográficas para imprimir circuitos de última geração. Eles tentam sufocar, mas você tem um parque científico e tecnológico na China, com milhões de engenheiros, matemáticos e cientistas que estão desenvolvendo novas tecnologias. Há dois meses, o mercado foi surpreendido com a potencialidade do DeepSeek, desenvolvido a uma fração ínfima do custo do ChatGPT da OpenAI. Essa fase em que você poderia estrangular [a economia chinesa] já passou. Do ponto de vista tecnológico e comercial, a tentativa de frear a China já perdeu o prazo de validade", explica.
Conforme o especialista, desde a crise econômica mundial de 2008, causada pela bolha imobiliária nos Estados Unidos, o país viu seu poder de barganha cair drasticamente, enquanto esse vácuo comercial passou a ser cada vez mais ocupado pela China.
"Seria muito difícil voltar à roda da história e ter a hegemonia que eles já tiveram no seu auge antes dessa crise. É impossível você argumentar até com um aliado dos Estados Unidos na Ásia, como as Filipinas, que iria abrir mão do comércio com a China porque isso desagrada os norte-americanos. Podemos colocar na mesma conta o Brasil, que tem na China o maior mercado para as commodities, principalmente de seu setor econômico mais poderoso, que é o agronegócio. É praticamente impossível perder esse comércio […], e ninguém encontraria nenhum substituto que pudesse compensar essa perda", diz.
Em qual revolução industrial estamos atualmente?
Enquanto o governo Trump tenta reativar a produção nacional, o mundo vive o momento chamado Indústria 4.0, em que a tecnologia protagoniza o processo industrial com sistemas inteligentes que reduzem cada vez mais o contingente necessário de mão de obra.
O professor da Unesp lembra que uma das promessas do republicano para "fazer a América grande novamente" (Make America Great Again, no original) é justamente voltar à época em que o emprego industrial era a base dos EUA, entre as décadas de 1920 e 1970. Para atingir esse objetivo, frear a China é crucial.
"A questão é se do ponto de vista econômico seria viável produzir um bem de consumo que não conte com a agilidade e os baixos custos dessas cadeias produtivas. Eu imagino que isso seria um tiro na água. Os processos produtivos atuais tendem a poupar muito a mão de obra. Então, por mais que você traga, por exemplo, toda a cadeia produtiva da indústria automobilística para dentro dos EUA, jamais vai recriar uma cidade como Detroit, que vivia em torno disso. Não vai ter uma planta com até 50 mil trabalhadores, porque a maior parte dessa produção será feita por robô", enfatiza.
Outro ponto que o especialista questiona sobre as novas iniciativas do governo Trump é também retomar o foco do país nos combustíveis fósseis, enquanto a China se isola cada vez mais na produção de veículos elétricos.
"Isso é um problema porque já estamos no meio da transição energética, e não é porque os norte-americanos vão optar por um motor a combustão interna que a indústria de veículos elétricos no mundo vai ser paralisada. O segundo ponto é observar a própria reviravolta na indústria automobilística, porque há tempos foram impostos 100% de tarifas sobre os veículos elétricos chineses, só que tem um detalhe que é interessante: a China hoje produz 30 milhões de automóveis. É a soma de todos os demais cinco maiores produtores do mundo."
Qual o papel da China no mercado global?
Da América Latina à África, da própria Ásia ao Oriente Médio, a China viu nas últimas décadas um salto exponencial das relações comerciais e, consequentemente, diplomáticas, com vários atores no mundo. No ano passado, por exemplo, o superávit da balança chinesa chegou ao recorde de quase R$ 6 trilhões. Apesar de considerar que as novas tarifas norte-americanas vão causar impactos na economia chinesa, o doutorando em relações internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Rodrigo Abreu pontuou ao podcast Mundioka que as múltiplas parcerias firmadas pelo país ajudaram, e muito, a expandir seu mercado consumidor, o que ajuda a driblar eventuais sanções.
"Há poucos anos, muitas empresas chinesas tinham dificuldade de adentrar mercados específicos, como na África e até na América Latina, que era muito controlada por corporações norte-americanas. Então esses acordos comerciais se tornaram parte central da estratégia da China para conseguir colocar seu capital dentro desses territórios. É muito importante também destacar as obras de infraestrutura que o país faz, principalmente em países menos favorecidos, o que também ajuda a criar laços diplomáticos que favorecem a entrada chinesa no mercado local", enfatizou.
O especialista também acrescenta a aproximação chinesa com a Rússia, garantindo o acesso do país a recursos energéticos de forma mais estável e competitiva. "Antes, a China importava muito do seu petróleo do Oriente Médio e até dos Estados Unidos. Então, com essa parceria estratégia mais forte, favoreceu bastante as duas potências a conseguirem driblar os efeitos dessas sanções", finaliza.
Por Sputinik Brasil