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Trump atua como o 'coveiro' da ordem global que os próprios EUA criaram e derrubaram, nota analista

Publicado em 06/03/2025 às 17:36
© AP Photo / Alex Brandon

Em entrevista ao podcast Mundioka, especialistas apontam que o declínio do imperialismo dos EUA observado hoje iniciou quando Washington decidiu invadir o Iraque, em 2003, sem a chancela da ONU, levando outros países a questionar as instituições criadas por governos norte-americanos.

Desde o século XIX, os Estados Unidos se consideram "a nação escolhida", e essa crença é refletida na doutrina do Destino Manifesto, que determina que o país tem a suposta missão divina de se expandir pelas Américas e pelo mundo. Foi essa crença imperialista que levou o país a se expandir para o Oeste, promovendo a matança de indígenas e posteriormente tomando grande parte do território do México na Guerra Hispano-Americana (1898).

Com a Segunda Guerra Mundial, que colocou países europeus em forte crise econômica, os EUA se consolidaram como a principal potência do mundo, e desde então criaram mecanismos para garantir essa hegemonia, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas (ONU), e impuseram a Doutrina Truman, que oficializou a política de contenção do comunismo e a expansão da influência dos EUA pelo mundo.

Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, Roberto Moll Neto, professor de história da América na Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador da Rede de Estudos dos Estados Unidos, explica que a Doutrina Truman foi uma agressiva política de contenção que tinha como verdadeiro objetivo "estabelecer uma política de portas abertas no mundo inteiro para a economia estadunidense".

"De certa maneira, é essa política de contenção que vai ser a gênese da Guerra Fria. [...] E aí os EUA passam a intervir, sob a justificativa de conter um avanço, um suposto avanço da União Soviética, a partir de ações militares em outros países e também a partir da concessão de empréstimos, de ajuda, enfim, de todo tipo de tentativa de atrelar os países, principalmente da Europa Ocidental e da América Latina, à esfera de influência dos EUA dentro da Guerra Fria."

Neto afirma que essa política de contenção também é refletida no Plano Marshall, usado para reconstruir a Europa nos pós-Segunda Guerra, e também para conter a influência soviética na América Latina. Ele lembra que, posteriormente, a América Latina também serviu como uma espécie de laboratório que garantiu experiência aos EUA para estabelecerem as mesmas formas de dominação sobre outras regiões do globo, sobretudo do ponto de vista militar, treinando forças armadas latino-americanas.

"A experiência dos EUA na América Latina, de certa forma, constrói um modelo de aliança, por exemplo, dos EUA com as elites latino-americanas. Um modelo que, na verdade, também não é novidade. Os EUA vão aprimorar esse modelo, que é um modelo colonial, é um modelo da própria influência britânica, depois das independências latino-americanas. Os EUA vão se apropriar desse modelo, vão aperfeiçoar esse modelo, vão ajustar esse modelo às condições do século XX, e depois espalhar esse modelo para outras regiões do globo."

Ele acrescenta que esse modelo se estabelece com uma dominação em que "os EUA estão em uma estreita aliança com as elites latino-americanas e com as forças militares da região também". Nesse contexto, o especialista afirma que o filme "Ainda estou aqui", que recentemente concorreu ao Oscar, "é sensacional nesse sentido".

"Eu acho que o filme, na verdade, ele é muito bom para a gente lembrar o que está acontecendo e para a gente evitar que algo semelhante ao que acontece no filme volte a acontecer, que são justamente a imposição de um governo autoritário, ditatorial, que some e mata, assassina as pessoas", observa Neto.

Neto destaca ainda que a guerra às drogas na América Latina também "serviu de pretexto para militarização na América Latina e controle" da região.

"É curioso porque vem sempre uma discussão atrelada à guerra às drogas, que é uma discussão de que, isso é possível perceber hoje, inclusive no [governo de Donald] Trump, mas é a percepção de que as drogas são uma ameaça que vem do exterior, que vem de fora dos EUA, nunca é uma ameaça construída dentro dos EUA, os EUA não têm nenhuma relação com isso, a não ser de vítima."

Ele explica que sob o argumento de guerra às drogas, os EUA começam a ter uma interferência direta em países como o México e a Colômbia, não só em treinamento das forças armadas desses países, mas com interferência direta na construção de um aparato militar.

"E aí tem o outro lado, os EUA ganham rios de dinheiro, indústrias bélicas globais que têm sede nos EUA ganham rios de dinheiro vendendo armas para a guerra às drogas nesses países, inclusive no Brasil também. Então, essas interferências têm diversas facetas. Tem a faceta do controle político e social, tem a faceta do ganho econômico e tem uma faceta que seria, supostamente, de combate às drogas", afirma.

Késsio Lemos, doutor em relações internacionais e pesquisador no Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE), afirma ao podcast Mundioka que durante a Guerra Fria governos progressistas ou nacionalistas que estivessem de alguma forma ameaçando o modelo econômico e político propagado pelos EUA foram sistematicamente ou derrubados ou desestabilizados.

"Nós tivemos, por exemplo, na Guatemala, em 1954, a deposição do [presidente Jacobo] Arbenz, que não foi apenas uma operação anticomunista, mas uma proteção direta aos interesses da empresa United Fruit Company, que foi uma empresa americana, o que de certa forma revela essa frequente confluência entre os objetivos geopolíticos e também interesses corporativos dos EUA", explica.

Lemos acrescenta que em 1961, a fracassada tentativa de invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, demonstrou "o limite do poder militar americano frente a movimentos nacionalistas com forte apoio popular", mas que, em seguida, houve "a intervenção na República Dominicana, em 1965".

"Essa intervenção na República Dominicana de certa forma revela que Washington considerava inaceitável qualquer possibilidade de haver outra Cuba nas Américas, mesmo quando isso significasse frustrar processos democráticos legítimos que o país estava observando, presenciando naquele momento."

Ele afirma ainda que "o caso do Chile, em 1973, é emblemático", pois um governo democraticamente eleito, de Salvador Allende, foi derrubado "justamente quando implementava políticas de redistribuição de renda e também de nacionalização dos seus recursos naturais".

"E naquele momento o país vai se tornar uma espécie de laboratório para políticas que a gente considera hoje, que chamamos, de neoliberais, que são políticas que, apesar de gerarem crescimento econômico naquele país, elas vão aumentar drasticamente a desigualdade social. Tivemos as próprias intervenções no Brasil aqui, em 1964. Então essas intervenções prejudicaram significativamente o desenvolvimento desses países", afirma o especialista.

Lemos frisa que o aspecto militar é um ponto bastante crucial da liderança dos EUA, que têm mais de 750 bases militares ao redor do mundo.

"Esse é um ponto bastante crucial dessa liderança dos EUA, é o aspecto militar. Uma rede de bases militares que os EUA têm hoje, e ela sustenta esse imperialismo porque ele tem uma projeção de poder global."

Ele acrescenta que as bases americanas conferem aos EUA a capacidade de intervenção rápida em qualquer continente, além do controle de rotas não só comerciais, mas rotas de recursos energéticos.

"Essa quantidade de bases também possibilita aos EUA o que a gente pode chamar de cerco estratégico a rivais. Nós temos bases ao redor de, hoje, principalmente, Rússia e de China. Nós temos aqui essa barreira da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] tentando a contenção da Rússia e nós temos cada vez mais a presença dos EUA também no Pacífico, tentando cercar o avanço chinês. E essa presença militar também pode ser instrumentalizada como um exercício de influência política", explica.

Lemos afirma que o declínio do imperialismo dos EUA começou quando o país, em meio à guerra ao terror, decidiu invadir o Iraque sem a chancela da ONU, que havia referendado apenas a invasão ao Afeganistão diante do 11 de Setembro.

"Quando os EUA fazem esse movimento, estão de certa forma destruindo qualquer tipo de credibilidade e de força moral que mantinham, as instituições internacionais que legitimavam a sua hegemonia começam a erodir a partir dali. Então [...] desde a invasão do Iraque nós vemos que esse conceito de 'Se os EUA, o grande líder da ordem internacional, não mais decidem obedecer às regras que eles mesmos criaram, por que os outros países vão obedecer? E a partir daí nós temos um declínio, uma erosão do sistema internacional, dessa ordem internacional criada pelos EUA."

Ele acrescenta que isso vai se intensificar com a ascensão de atores revisionistas que vão criticar essa ordem e demandar uma reformulação.

"É o caso da Rússia, da China, do próprio Brasil, a ascensão do BRICS, a articulação. E nós vamos ver a criação de alternativas e organizações que possam servir como alternativa às instituições lideradas pelos EUA. Então, depois de 2003, daquela invasão [ao Iraque], nós temos o BRICS, nós temos o próprio Banco do BRICS, nós temos outros processos de criação de novos sistemas, novas instituições multilaterais que começam a contestar a ordem dos EUA."

Nesse contexto, Lemos afirma que o que se vê agora "é nada mais nada menos do que uma completa reconfiguração".

"O que o Trump faz agora é, de certa forma, servir como um coveiro da ordem internacional criada pelos EUA. Porque os EUA perceberam que a própria ordem que eles criaram já não estava trazendo a garantia de liderança econômica e militar no mundo. O crescimento estrondoso da China, a própria força militar da Rússia, a reconstrução militar da Rússia, fez com que os EUA agora tentem assumir uma postura muito mais dura", explica.

Ele afirma que o que ocorre agora é como um jogo de xadrez, no qual um participante, percebendo que está perdendo, finge derrubar o tabuleiro para reiniciar a partida.

"Então, de certa forma, o que os EUA fazem nesse momento é 'Vamos destruir esse tabuleiro, vamos tentar reconfigurar, porque até agora, se continuasse daquele jeito, a derrota estava certa'. A gente não sabe se esses novos movimentos dos EUA a partir do Trump vão acelerar, vão frear ou reverter o declínio dos EUA. Mas que estamos em um ponto de inflexão, isso, certamente, estamos. Em um ponto muito importante de transformação da ordem internacional."


Por Sputinik Brasil