Natal em Bebedouro: a luz da fé no epicentro do descaso
Na noite de 24 de dezembro de 2025, a Arquidiocese de Maceió voltou a celebrar a Missa de Natal em Bebedouro, diante da antiga matriz paroquial de Santo Antônio de Pádua. A escolha do local esteve longe de ser neutra ou protocolar. O bairro integra a geografia social marcada pelo crime ambiental da Braskem associado à mineração de sal-gema, responsável por deslocamentos forçados, perdas materiais, rupturas comunitárias e por um sofrimento que ainda conforma o cotidiano da capital. Ao celebrar ali, a Igreja reposicionou simbolicamente o Natal no epicentro da dor.
O gesto ultrapassou um simples ajuste da agenda litúrgica e se tornou uma tomada de posição pública: a Encarnação é incompatível com a neutralidade diante do sofrimento coletivo. O Natal bíblico anuncia um Deus que se revela a partir de baixo, no desalojamento, na precariedade e na exclusão. Quando a Missa do Galo acontece no bairro ferido, o símbolo se impõe: o presépio deixa de ser ornamento devocional e passa a funcionar como critério histórico e teológico para discernir a realidade.
A celebração campal aprofunda esse sentido. A praça pública é um espaço aberto, sem paredes, onde a liturgia não se separa do clamor social. Em Bebedouro, o Natal assumiu a feição de um verdadeiro sacramento social, expressão de uma fé comprometida com a verdade histórica e com a justiça concreta, em sintonia com a tradição profética: “aprendei a fazer o bem, buscai o direito, socorrei o oprimido” (Is. 1, 17). A liturgia converteu-se, assim, em denúncia silenciosa: Deus-conosco exatamente onde a cidade falhou.
Esse gesto ganha maior densidade quando se reconhece que a própria Igreja local também foi atravessada pelo Caso Braskem. A tragédia não se restringiu a casas e ruas, mas alcançou estruturas institucionais, contratos, responsabilidades e questões que permaneceram, por anos, insuficientemente enfrentadas. Celebrar o Natal em Bebedouro, isto é, encher novamente de vida e alegria um espaço que não pode mais ser habitado, significou admitir que a conversão exigida pela fé não se limita ao âmbito pessoal, mas alcança também as instituições, e que nenhuma comunidade cristã pode se considerar exterior à história concreta que a envolve.
Nesse percurso, a experiência dos atingidos pela Braskem em Maceió foi marcada não apenas por silêncios, mas também por vozes proféticas persistentes. Entre elas, destaca-se a atuação do Pastor Wellington, da Igreja Batista do Pinheiro, que, desde os primeiros momentos da crise, assumiu posição pública ao lado das famílias atingidas. Sua presença constante em audiências, atos públicos e espaços de escuta das vítimas construiu uma referência ética e pastoral que ultrapassa fronteiras confessionais, lembrando que a denúncia da injustiça ambiental e a defesa da dignidade humana constituem um chamado comum às igrejas cristãs. Em Bebedouro, o Natal celebrado na praça dialogou, ainda que implicitamente, com essa trajetória ecumênica de compromisso e resistência.
A inflexão na postura da Arquidiocese torna-se mais evidente quando se contrastam os dois últimos governos episcopais. Durante o pastoreio de Dom Antônio Muniz, predominou uma condução administrativa e defensiva do tema. Em 2024, o então arcebispo confirmou publicamente a parceria da Fundação Leobino e Adelaide Motta, entidade vinculada à Arquidiocese e responsável pela administração de bens destinados a obras sociais e educacionais, com uma empresa de extração de areia destinada ao abastecimento da construção civil, especialmente para obras de engenharia, aterros e intervenções de estabilização do solo em Maceió, intensificadas após o desastre associado à Braskem.
À época, Dom Antônio sustentou a regularidade da atividade e afirmou que, se dependesse dele, a Igreja continuaria extraindo e comercializando o material, condicionando eventual interrupção apenas a determinações externas. O chamado “silêncio episcopal”, nesse contexto, não significava ausência de pronunciamentos, mas ausência de ruptura, tratando o problema como questão técnica e interna, distante da experiência concreta das comunidades atingidas.
Com a chegada de Dom Beto Breis, também em 2024, a atuação da Arquidiocese assumiu outra orientação pastoral e administrativa. Desde o início de seu episcopado, o franciscano afirmou o compromisso de enfrentar não apenas as injustiças associadas ao Caso Braskem, mas também entraves estruturais de transparência e gestão que vinham marcando a vida institucional da Igreja local.
Esse compromisso se traduziu, ao longo de 2025, em iniciativas concretas de prestação de contas: auditorias internas, levantamento detalhado das contas ligadas à extração e comercialização de areia, suspensão de contratos considerados questionáveis e adoção de medidas judiciais para resguardar o patrimônio da Fundação Leobino e Adelaide Motta.
Nesse processo, foram encerrados contratos antigos de extração de areia que estavam sob investigação por possível exploração irregular em áreas ambientalmente sensíveis, como o Sítio Bom Retiro, localizado na zona rural de Maceió, em região próxima a dunas e aquíferos afetados pelo rebaixamento do solo no contexto da crise ambiental que atinge a capital.
Paralelamente, a Arquidiocese reafirmou, em notas públicas, a distinção entre fatos comprovados e hipóteses ainda em apuração, bem como o compromisso com a transparência, a legalidade e a correta gestão, manifestando disposição para responder formalmente às autoridades e cooperar com as investigações conduzidas pelo Ministério Público. Do ponto de vista pastoral, a ênfase não recai sobre antecipar julgamentos, mas sobre afirmar que a resposta cristã, diante de suspeitas graves, não pode ser autoproteção corporativa, e sim busca da verdade, da reparação e da justiça.
É nesse horizonte que a atuação de Dom Beto se inscreve como expressão local da encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, que o nomeou arcebispo metropolitano de Maceió. O documento recorda que tudo está interligado e que a ecologia integral exige escutar simultaneamente o clamor da terra e o clamor dos pobres. Na Arquidiocese, essa articulação deixa de ser abstrata: a crise ambiental converteu-se em crise urbana, social, econômica e espiritual.
Ao transferir o Natal para Bebedouro, longe das luzes, dos ricos enfeites e dos pontos turísticos instagramáveis da Ponta Verde, e assumir publicamente a pauta da transparência, a Arquidiocese tornou patente uma tese central da encíclica: não há fé autêntica que trate o sofrimento coletivo como assunto alheio. Transparência e honestidade, nesse contexto, não são jargões administrativos, muito menos bordões demagógicos, mas virtudes cristãs. A verdade não é acessório da caridade: integra a sua substância.
Essa conversão pastoral dialoga com a espiritualidade nordestino-alagoana, marcada por um verdadeiro catecismo de chão. Os preceitos ecológicos do Padre Cícero, como não destruir o mato, não tocar fogo na caatinga e respeitar os animais, expressam uma ética do cuidado anterior às formulações técnicas. Ao valorizar as romarias e a chamada “nação romeira”, Dom Beto reconhece essa sabedoria popular como fonte legítima de discernimento cristão.
A romaria é fé em movimento. A Laudato Si’ expressa a Igreja aprendendo a caminhar com as vítimas e com a Casa Comum. Quando o arcebispo se aproxima dos romeiros e, em diálogo com outras lideranças cristãs comprometidas, assume a denúncia e a correção institucional, consolida-se a convicção de que a Igreja não é um clube de perfeitos, mas um hospital de campanha quando a vida é ferida.
O Natal de 2025 em Bebedouro se afirmou, assim, como um marco simbólico, pastoral e ecumênico. A Arquidiocese optou por não celebrar à distância do problema, mas no interior dele, em sintonia com outras vozes cristãs – como a do Pastor Wellington do Pinheiro – que, há anos, sustentam a resistência dos atingidos. Trata-se de uma catequese pública que ensina que Deus não se encontra apenas no altar das catedrais, mas também no chão rachado da história.
Se essa escolha se sustentar no tempo, com acompanhamento efetivo às vítimas, defesa da reparação, cooperação com as investigações e cultivo permanente da prestação de contas, Dom Beto será reconhecido não apenas pelo discurso, mas por traduzir a Laudato Si’ na vida concreta de Maceió. Em última instância, é isso que Bebedouro exige: não palavras elegantes sobre esperança, mas uma esperança verificável, construída com presença, verdade e justiça.
(*) Doutor e Letras e Linguística, Mestre em Sociologia, Especialista em História de Alagoas, Graduado em Filosofia, Professor do Instituto Federal de Alagoas – Ifal.