sexta-feira, 29 de março de 2024
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75% dos testes de coronavírus importados pelo Brasil são pouco confiáveis e podem falhar

Por Breno Costa

O Brasil está comprando testes de coronavírus de terceira divisão. Um levantamento do Intercept, que cruzou dados de processos de liberação de testes no país com os de sistemas de vigilância sanitária de outros países, mostra que 75% dos reagentes para a verificação do vírus da covid-19 já autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, chegam ao Brasil sem a chancela internacional apropriada.

Isso quer dizer que prefeituras, governos e empresas brasileiras estão comprando testes que não têm aval do controle sanitário dos países de origem para serem vendidos neles. Na última semana de abril, a Anvisa liberou a venda desses testes rápidos em drogarias, podendo ser adquiridos por qualquer pessoa.

A agência liberou, até aqui, testes para detecção do novo coronavírus fabricados por 28 laboratórios estrangeiros. Mas apenas sete desses foram aprovados em inspeções efetivas em seus países de origem.

O maior problema está nos testes importados da China. Dos 28 laboratórios estrangeiros cujos testes foram aprovados pela Anvisa, 15 são chineses. No entanto, somente três deles foram aprovados pela vigilância sanitária do país.

O governo chinês fechou sua lista mais atualizada de testes aprovados em 3 de abril. Ela inclui 25 opções certificadas. Apenas três delas, portanto, foram escolhidas por importadores e órgãos públicos brasileiros. Antes da publicação dessa lista, era um vale tudo. Um laboratório, por exemplo, o Hangzhou Biotest Biotech já havia colocado seus testes nos mercados dos Estados Unidos e do Reino Unido – mas não era e segue não sendo certificado, conforme atualizações publicadas pelo governo chinês na página de seu órgão oficial de vigilância sanitária. Agora, os kits que estão fora da lista não podem ser exportados para fora da China.

A qualidade dos testes fabricados pelo Hangzhou Biotest Biotech já foi questionada num estudo realizado na Universidade de Stanford, na Califórnia. A empresa chinesa apontava 91,8% de sensibilidade – quanto maior esse índice, menor a chance de um resultado falso negativo.

Mas, na verificação feita por um grupo de 17 pesquisadores de Stanford, a partir de amostras de 37 pessoas sabidamente contaminadas, os testes da Hangzhou Biotest Biotech apontaram, equivocadamente, que 12 delas não tinham a covid-19: uma sensibilidade de apenas 67,2%.

Antes mesmo da divulgação do estudo de Stanford, o governo chinês proibiu em 1º de abril a exportação dos testes desse fabricante – por também ter identificado problemas na precisão deles. A restrição atingiu vários outros fabricantes locais e tinha por objetivo “controlar estritamente a qualidade, manter a ordem de exportação e reprimir produtos falsificados e de má qualidade”.

Essa política foi reforçada em 29 de abril em uma conferência do governo chinês, segundo comunicado oficial. “Medidas mais rigorosas devem ser tomadas para reprimir atos ilegais relacionados a suprimentos antiepidêmicos incluindo acumulação, manipulação de preços, assim como a produção ou venda de produtos de qualidade inferior ou falsos”, afirma o comunicado. Entre esses suprimentos estão os kits de testagem.

Mas, antes que viesse a mudança declarada na política de exportações da China, carregamentos dos testes da Hangzhou Biotest Biotech já tinham zarpado da China rumo ao Brasil. Em 18 de março, a Anvisa havia dado autorização para a venda do produto, por dez anos, à Medlevensohn Comércio e Representações de Produtos Hospitalares Ltda.

Cinco dias depois, a Medlevensohn foi escolhida pelo governo do Amazonas para fornecer testes rápidos por R$ 1,3 milhão. Manaus tem até agora a situação mais dramática do Brasil devido à pandemia, com o sistema de saúde em colapso. Em nota, a Secretaria de Saúde do Amazonas, afirmou que, no processo de dispensa de licitação que resultou na escolha da Medlevensohn para o fornecimento dos testes, outras quatro empresas também foram sondadas, mas que a fornecedora dos testes da Hangzhou Biotest Biotech preencheu três requisitos: registro na Anvisa, menor preço e aceite de prazo de entrega. A secretaria também afirma que não houve nenhum registro de queixa técnica em relação aos testes e que, de uma carga de 30 mil contratados da Medlevensohn, 10 mil ainda estão pendentes de entrega.

Os kits fabricados pela Hangzhou Biotest Biotech chegaram no início de abril. Àquela época, o exame já não podia ser exportado. O governo da Paraíba também comprou esses mesmos testes, e o início da aplicação deles no estado foi documentado em reportagem do Fantástico, da TV Globo, em 26 de abril.

O caso da Hangzhou Biotest Biotech não é isolado. Outra fabricante chinesa, a Chaozhou Hybribio Biochemistry, não tem chancela do governo de Pequim para exportar seus testes. Apesar disso, aparentemente a Bahia é a grande vitrine mundial de seus produtos. A página da empresa na internet destaca a entrega de testes para o governo baiano – foram 60 mil –, despachados por avião em 30 de março. É a única menção a clientes externos durante a pandemia, além de uma postagem sobre uma carta de agradecimento recebida do governo da Hungria. A Brazil 3 Business Participações, representante da Chaozhou Hybribio Biochemistry por aqui, diz ter acordo que prevê a aquisição de 3 milhões de testes para serem revendidos no mercado brasileiro. O governo baiano foi procurado para comentar o negócio na quarta-feira, dia 29, por email, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.

No Brasil, não há inspeção

E como esses testes são validados pela Anvisa, mesmo sem o aval de seu país de origem? Por causa da pandemia, em 19 de março a agência reguladora mudou as regras. O objetivo era tirar burocracias do caminho para permitir o abastecimento mais rápido do defasado mercado nacional. A medida não tinha como único foco os testes e incluía outros dispositivos médicos e equipamentos de proteção individual.

A Anvisa decidiu aceitar documentação incompleta dos fabricantes e não fazer inspeção para certificar práticas adequadas de fabricação. Em caso de pendência de documentos, em vez da autorização padrão de dez anos, seria dada uma licença provisória, de um ano. Nesse período, a fabricante e sua representante no Brasil poderiam atualizar a documentação e prorrogar a comercialização por mais nove anos.

Um dos documentos que passou a ser aceito foi uma “declaração simples emitida pelos Responsáveis Legal e Técnico da empresa solicitante informando que o produto em questão é regularizado e comercializado em jurisdição membro do International Medical Device Regulators Forum (IMDRF)”. A própria China está entre os membros desse fórum. Mas também fazem parte dele Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão, entre outros países. Ou seja: a ausência de autorização expressa pelo governo chinês não seria impeditivo, desde que outro integrante do grupo tivesse dado o aval.

A União Europeia é um dos membros do grupo. Lá, a regulação para dispositivos médicos é a mesma desde 1998. Mas o rigor é praticamente inexistente se a ideia de um fabricante é apenas obter a certificação europeia para facilitar a venda de produtos em países de fora do bloco. Os fabricantes, aparentemente, viram ali uma brecha. A documentação da grande maioria dos testes não avalizados pelo país de origem e importados para o Brasil chegam por aqui com a marca “CE”, que é conferida pela Comunidade Europeia e deve ser impressa na bula e no rótulo do produto.

A CE Mark, como é conhecido o selo, dá uma aparência imediata de credibilidade ao teste. O problema é que qualquer fabricante de testes para covid-19 consegue obter a marca CE para vender esse produto fora da União Europeia sem ter que passar por nenhum tipo de verificação independente ou inspeção efetiva por órgãos do bloco. Basta declarar que o produto está conforme o exigido pelas regras europeias.

Uma inspeção para verificar se o produto está de acordo com a descrição só ocorre se o fabricante deseja vender os testes na União Europeia. Aí, sim, eles precisam passar por um pente fino da vigilância sanitária de cada país europeu onde o teste será comercializado.

É grande a tolerância europeia para carimbar a marca CE em testes para covid-19. Os procedimentos mais detalhados sobre a precisão dos testes são feitos apenas para determinados tipos de exames, considerados de maior risco – por exemplo, testes de HIV, hepatite, rubéola, toxoplasmose, citomegalovírus e dispositivos para medição de glicose no sangue.

Os testes rápidos para covid-19 vêm sendo enquadrados nas regras definidas no Anexo III da norma aprovada pela União Europeia há 22 anos, específica para os diagnósticos in vitro. Esse anexo prevê apenas a necessidade de uma autodeclaração, acompanhada de documentos produzidos pelo próprio fabricante.

Em abril, a Organização Mundial da Saúde, a OMS, também passou a avaliar testes, para dar mais um carimbo de credibilidade aos produtos. A entidade começou a receber, de forma voluntária, ensaios de fabricantes de testes rápidos, com o objetivo de “auxiliar agências e estados-membros interessados na adequada utilização de diagnósticos in vitro específicos, baseados em um conjunto mínimo de dados disponíveis sobre qualidade, segurança e performance”.

A avaliação também se baseia apenas em documentos e outras informações fornecidas pelo próprio fabricante, mas a OMS avisa que colocará disponíveis ao público eventuais avaliações negativas sobre o teste. Ou seja, é uma iniciativa de risco para os fabricantes. Problemas seriam divulgados em escala global. Até 28 de abril, 34 fabricantes haviam solicitado a avaliação da OMS por esse sistema. Desses, apenas três estão entre aqueles fabricantes autorizados pela Anvisa para comercialização no Brasil.

Sérgio Onofre, prefeito de Arapongas (PR), posa com testes rápidos fabricados pelo laboratório californiano Acro Biotech. Os testes circulam sem a autorização da FDA, equivalente americana da Anvisa, e não estão na lista de testes vendidos nos EUA. Fotos: Prefeitura de Arapongas

Nos EUA, autorizações precárias

Esse relaxamento de regras não é exclusividade do Brasil ou da União Europeia. Os Estados Unidos, país com maior número de mortes provocadas pelo novo coronavírus, adotaram um regime de exceção para a análise dos dispositivos para diagnóstico in vitro em 16 de março, pressionados pelo aumento vertiginoso de contaminação. A nova norma adotada pela FDA, equivalente americana da Anvisa, prevê uma autorização automática para que produtos sejam vendidos no mercado americano enquanto a agência analisa a concessão de uma licença emergencial de uso.

Mesmo com a concessão da autorização emergencial, isso não significa que a FDA está atestando a eficácia do produto. Não é feita uma inspeção detalhada, apenas se verifica a papelada apresentada pelos fabricantes – inclusive os do país. Seja como for, trata-se de uma autorização oficial do governo dos Estados Unidos, o que dá mais credibilidade para o teste, tornando-o mais atrativo no mercado. (Para esta reportagem, a autorização precária foi considerada como validação pelo país de origem, no caso de testes produzidos por fabricantes americanos.)

Antes de receber a autorização, ainda que precária, os testes são comprados por conta e risco pelos hospitais, empresas e governos dos EUA sem nenhuma chancela do órgão regulador. O resultado dos testes deve ser apresentado com alguns avisos, entre eles “Este teste não foi revisado pela FDA” e “Resultados negativos não descartam infecção por SARS-CoV-2, particularmente naqueles que tiveram contato com o vírus. Testes complementares moleculares devem ser considerados para descartar infecção nesses indivíduos”. No Brasil, não há nenhuma exigência parecida.

Nos Estados Unidos, 54 testes já foram aprovados pela FDA nesse sistema de autorização emergencial. Desses, somente cinco estão no mercado brasileiro. Como no caso da China, o número mostra a dificuldade que o Brasil vem encontrando para conseguir trazer para o mercado doméstico testes mais confiáveis num cenário de alta demanda global por esse tipo de produto.

Hoje, o Brasil parece jogar a terceira divisão mundial do campeonato de testes – seja pelo número de testes realizados no país, um dos mais baixos do mundo em relação ao tamanho da população, seja pela qualidade deles.

Um dos testes americanos, produzidos pelo laboratório californiano Acro Biotech, Inc. não consta sequer da lista dos que estão sendo vendidos nos EUA sem a autorização precária da FDA, mas já está sendo usado no Brasil. No registro na Anvisa, o rótulo do produto da Acro ainda não foi apresentado. A empresa tem um site bem simples e desatualizado. O teste tem sido vendido no por uma empresa paraibana, o Grupo ANT.

Mas o registro do teste da Acro Biotech na Anvisa pertence a uma pequena empresa de Minas Gerais, fundada por duas farmacêuticas, que também importa outros testes da China, produzidos por fabricante sem o atestado de qualidade do governo chinês.

Brecha legal

O Brasil está usando muitos testes – inclusive em Manaus – desenvolvidos pela Seegene Inc., da Coreia do Sul. Esses kits não estão à venda no Brasil, embora sejam um dos cinco que constam dos aprovados pelo governo sul-coreano, conforme lista mais atualizada disponível. Eles tampouco passaram pela avaliação da Anvisa para comercialização no país.

Trata-se de uma compra de 10 milhões de testes feita pelo Ministério da Saúde graças à intermediação pela Organização Pan Americana da Saúde, a Opas – mais um indicativo da baixa capacidade de articulação do governo brasileiro no mercado internacional para obter diretamente testes de qualidade verificada.

A falta de aprovação da Anvisa expôs um bate-cabeça no próprio governo, que ainda não tinha sido resolvido até a conclusão desta reportagem. Em 20 de abril, a empresa responsável pela importação para o Brasil, Innovare Diagnósticos e Representações Ltda, entrou na justiça contra o chefe da agência reguladora no aeroporto de Viracopos, em Campinas, por retenção dos testes importados.

A empresa alega que, desde 8 de abril, Anvisa e Receita Federal estão “retardando, de forma injustificada”, a liberação de cargas de testes contra covid-19 referente a nove licenças de importação. Uma dessas é uma remessa do pacote solicitado pelo Ministério da Saúde. O Intercept não teve acesso à íntegra do processo, então não é possível saber quantos testes estão retidos em Campinas.

A compra desses testes mesmo sem o aval da Anvisa é permitida por uma brecha legal que autoriza a dispensa de registro “insumos estratégicos quando adquiridos por intermédio de organismos multilaterais internacionais, para uso em programas de saúde pública pelo Ministério da Saúde”.

A compra via Opas foi a mais relevante feita pelo Ministério da Saúde até aqui. Até então, o governo vinha se fiando em doações volumosas da Petrobras e da Vale e em testes fornecidos pela Fiocruz, que importa reagentes de outros países. Os 5 milhões de testes doados pela mineradora numa tentativa de finalmente ver seu nome ligado a outras notícias que não crimes ambientais são uma exceção nesta história.

O fabricante deles (Guangzhou Wondfo Biotech Co, Ltd) passou pela certificação de qualidade do governo chinês. Três empresas brasileiras têm autorização da Anvisa para vender os testes produzidos pela fabricante. Eles estão espalhados pelo Brasil, distribuídos principalmente pelo governo federal.

A eficácia dos testes até pareceu ser uma preocupação do Ministério da Saúde, que se deu ao trabalho de publicar, em abril, um documento intitulado “Acurácia dos testes diagnósticos registrados para a covid-19”. Esse documento, no entanto, não traz nenhuma verificação dos testes avalizados pela Anvisa, mas apenas replica as informações das bulas. Somente na penúltima das 18 páginas do documento vem a ressalva de que “não foram encontrados estudos publicados que avaliassem esses testes na prática, podendo, portanto, apresentar um desempenho distinto daquele descrito pelos fabricantes”.

Em 30 de abril, em edição extra do Diário Oficial, a Anvisa publicou uma nova resolução, agora estabelecendo um procedimento até então inexistente e que pode ser uma forma de evitar a disseminação de testes ineficazes no Brasil. A norma determina que todas as empresas que importam os testes devem enviar à Fiocruz amostras para a realização de estudos sobre a eficácia deles – mas isso não é um procedimento prévio à autorização.

Segundo a Anvisa, não é possível “que todos os ensaios requeridos para aprovação de uso comercial estejam concluídos a tempo”, e o desafio de aprovar testes de forma rápida é “compartilhado por todas as autoridades reguladoras do mundo”. “Em situações de emergência como a que estamos vivendo, o cálculo custo-benefício tem de ser feito de modo a encontrar o equilíbrio entre as flexibilidades possíveis ou necessárias, bem como a segurança e eficácia desejadas”, afirma a agência reguladora.

Em resposta ao Intercept sobre os registros com validade limitada a um ano, decorrente de documentações incompletas por parte dos fabricantes, “a Anvisa reconhece que a ausência de qualquer estudo de desempenho ou restrição de dados deve ser justificada com motivações técnicas que permitam a avaliação da confiabilidade dos resultados e da efetividade diagnóstica do produto”.

A agência diz que é responsabilidade do fabricante colocar no mercado produto que corresponda às informações apresentadas no registro, mas pontua que, mesmo após a aprovação da comercialização, tanto ela quanto as vigilâncias sanitárias nos estados “continuam monitorando o comportamento dos produtos, seja por meio de queixas técnicas ou pela avaliação laboratorial de desempenho”

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